“Estamos engrandecendo o encarceramento sem ter nenhum impacto na criminalidade”

“Estamos engrandecendo o encarceramento sem ter nenhum impacto na criminalidade”

Por Fernanda Valente

“Parte significativa do encarceramento é responsabilidade dos juízes. É o que mostra em sua tese de doutorado Marcelo Semer, de 53 anos, juiz substituto da Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Segundo Semer, o fenômeno pode ser explicado com dois conceitos: pânico moral e estado de negação. No primeiro, os juízes veem no tráfico, um dos objetos de estudo do estudo, o pilar da grande criminalidade. Assim, quando se depara com condutas pequenas, o juiz continua a fixar penas altas e recusar minorantes. 

A negação acontece quando o juiz, mesmo tendo conhecimento da realidade brasileira, confia quase que cegamente no depoimento policial.  “A mesma informação que tem na mídia e nos processos sobre violência policial, o juiz ignora e avalia policial, pensando ‘só vou divergir do policial ou não confiar no policial se houver uma prova robusta contra ele’. Há um recolhimento seletivo desse senso comum”, explica Semer.

Formado pela faculdade de Direito da USP, Semer acaba de concluir seu doutorado na área de criminologia. Em seu trabalho, o juiz se debruça para analisar 800 sentenças sobre tráfico de drogas de 8 estados (São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraná, Goiás, Pará, Bahia e Maranhão). Seu foco era entender o papel do juiz na formação do grande encarceramento no Brasil.

Leia a entrevista:

ConJur — Setores da magistratura passaram a contestar o “mito do superencarceramento”. A teses é que, em números absolutos, o Brasil não prende tanta gente assim e que os levantamentos oficiais usam os presos no regime aberto para inflar a população carcerária. Faz sentido?
Marcelo Semer — Essa visão de que o encarceramento é um mito é uma idiotice. O Brasil tem a terceira maior população prisional do mundo e recentemente passou a Rússia. A contestação de taxas relativas de encarceramento não é inteligente, considera uma tabela que calcula a taxa de encarceramento em relação à população do país. Por essa tabela, a primeira colocada na taxa de encarceramento é a Ilha de Seichelles, que tem uma população irrisória. O Brasil tem um índice carcerário alto se comparado aos países de grande encarceramento e não dá para compará-lo com os Estados Unidos nem com Seichelles.

ConJur — O senhor acaba de se doutorar com uma tese sobre o papel dos juízes no encarceramento. Qual é esse papel?
Marcelo Semer — O juiz tem uma enorme responsabilidade no encarceramento. Se não entendermos que parte significativa da responsabilidade é nossa, não há como resolver o problema. Sempre achamos que vamos resolver o problema construindo mais cadeia, mas os orçamentos são limitados.

Na virada punitiva, muitos autores do common law dos Estados Unidos e  da Inglaterra narram que uma das questões que mais impactou o crescimento do encarceramento nos países foi diminuir a discricionariedade do juiz. Eles trabalhavam com penas livres no common law e, com isso, há um minimum mandatory sentence, ou seja, uma pena mínima. Na execução penal, há o dever de cumprimento de 85% da pena, a previsão de que três pequenas condenações levam a penas gigantescas etc. Essa redução da discricionariedade do juiz acabou produzindo penas muito excessivas.

ConJur — O mesmo acontece no Brasil?
Marcelo Semer —
Esse não é o panorama brasileiro. Na Lei de Drogas, por exemplo, é exatamente o contrário. Embora não seja uma lei muito boa, ela permite maior discricionariedade do juiz para conceder benefícios e separar o grande traficante do micro tráfico. Os juízes, porém, não usaram esses benefícios. O que minha pesquisa mostra é que o juiz resiste o quanto pode a aplicar isso. Se nos Estados Unidos ou na Inglaterra existiu uma pressão forte que veio do estado político, ou seja, da lei que determinou que as penas fossem aumentadas, aqui não posso atribuir à legislação. A tese mostra que aqui em grande parte deve ser atribuída ao juiz.

ConJur — Por quê?
Marcelo Semer —
Busquei, por meio das sentenças, ver o que o juiz faz. As sentenças são de 2013 a 2015. A lei abriu oportunidade para o juiz aplicar o privilégio, o redutor do tráfico, e há uma enorme construção de obstáculos para isso. Alguns juízes simplesmente não aplicam isso dizendo que é inconstitucional, outros porque acham que o réu não merece, outros, porque as quantidades de drogas são altas, mesmo não havendo critério algum. Outros aplicam, mas em patamares menores, de modo que isso acaba não produzindo o resultado que se imaginava.

O Supremo tomou duas decisões importantes, de que a proibição de conceder penas restritivas de direitos e a obrigatoriedade do regime inicial fechado são inconstitucionais. Minha pesquisa foi feita depois das decisões. Vi que há enorme resistência dos juízes, especialmente os de São Paulo, a aplicar os paradigmas do STF. Isso provoca um grande encarceramento.

Portanto, o que o Supremo vai fazer 15 anos depois, os juízes já poderiam fazer direto na sentença. Então há uma omissão dos juízes nesse ponto. Por isso não dá pra dizer que há um grande encarceramento porque existe uma lei de drogas muito severa.

ConJur — A tese fala de pânico moral e estado de negação na formatação do papel do juiz como “agente encarcerador”.
Marcelo Semer —
São dois conceitos trabalhados pelo sociólogo sul-africano chamado Stanley Cohen. O pânico moral explica um pouco porque os juízes fixam penas altas em relação ao tráfico de drogas, se recusam a aplicar as minorantes, deixam prisões preventivas praticamente absolutas, baseados no fato de que o tráfico é um elemento central, gravíssimo, que corrói a sociedade e a humanidade, ruína toda a família etc etc. A ideia de que o tráfico é o pilar da grande criminalidade, portanto, mesmo quando o juiz se depara com condutas pequenas, que é a maioria do nosso trabalho, ele continua aplicando essa lógica que é a lógica do pânico moral, a lógica do alarde, do exagero, da criação do inimigo público.

O estado de negação é o de que como juiz, mesmo ciente de todos os percalços que há com a polícia, de todas as acusações, de todos os índices de violência altíssimos, praticamente terceiriza a prova da droga na mão dos policiais, como se eles fossem os agentes da Justiça e tivessem a plena confiança.

Os juízes quando olham para os traficantes costumam trazer para si todo aquele entorno de senso comum que é visto na televisão. “Olha, há muita violência no tráfico, portanto aquele que foi pego com uma grama vai ficar preso porque ele está dentro dessa grande estrutura”. Por outro lado, toda a mesma informação que tem na mídia e nos processos sobre violência policial, o juiz ignora e avalia policial, pensando “só vou divergir do policial ou não confiar no policial se houver uma prova robusta contra ele”. Há um recolhimento seletivo desse senso comum.

ConJur — O peso que os flagrantes têm no sistema não é sintoma da ausência de investigação policial?
Marcelo Semer —
Total. Na tese, os números mostram que o índice de prisões com base em flagrantes chega a 89%, e quase nada de investigação. Considerei “investigação” qualquer medida investigativa formalizada, como busca e apreensão ou interceptação telefônica. Esse último atingiu a 3%. Ou seja, não trabalhamos com o grande traficante. Os níveis de apreensão de drogas são relativamente baixos. Considero grandes apreensões acima de 10 quilos. Encontrei 20 casos em 800 e, mesmo nesses casos, os réus são primários, há pouca coautoria, pouca apreensão de dinheiro. Qual é o impacto disso para combater a macro criminalidade? Nenhum, absolutamente nenhum. Estamos engrandecendo o encarceramento sem ter nenhum impacto na criminalidade, é por isso que ela continua crescendo.

ConJur — Os juízes têm se preocupado mais com segurança pública do que com a jurisdição?
Marcelo Semer —
Chego à conclusão de que uma parcela grande dos juízes tem se preocupado mais com a ordem do que propriamente com a lei. O juiz está se inserindo erroneamente nas funções de segurança pública. Uma das fontes que me permite dizer isso é o trato que o juiz tem em relação à prova policial. A prova do tráfico de drogas é majoritariamente fincada na declaração dos policiais. Os juízes colocam os policiais numa forma absolutamente abstrata, como pessoas honestas que fizeram seus concursos e que defendem a lei e a ordem e, portanto, devemos acolher suas manifestações, ignorando que vivemos no país onde existe maior violência policial contra civis do mundo.

ConJur — O entendimento fixado nas decisões é o mesmo no país inteiro ou varia por estado?
Marcelo Semer —
Há uma grande divergência nas decisões dos juízes nos estados. Pelo estudo, em São Paulo os juízes aplicaram 90% regime fechado, enquanto a Bahia ou Maranhão estão por volta de 30% em regime fechado. Fiz uma pesquisa de confirmação com os tribunais também, mas dá mais ou menos uma transparência de 80% a 90%, de modo que os tribunais mantêm as decisões dos juízes com poucas alterações.

Os estados maiores, como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul ou Paraná aplicam menos as jurisprudências dos tribunais superiores do que os estados menores. Fora da minha pesquisa, há uma ruptura bem conhecida entre as decisões do STJ e as do TJ de São Paulo.

ConJur — Um argumento que costuma surgir nas discussões sobre criminalidade é que o sistema processual penal tem recursos demais, o que favorece a impunidade. Temos mesmo muitos recursos?
Marcelo Semer — Não vejo nisso um problema. O que percebo é que houve certa regionalização da jurisprudência. Um réu por tráfico, com as mesmas circunstâncias, pode pegar cinco anos no regime fechado em São Paulo ou três anos no regime aberto na Bahia. Isso é aceitável nos Estados Unidos, onde há leis regionais, mas não no Brasil, que tem uma legislação unitária. Um dos dados que vai agravar essa situação é justamente a ideia da prisão em segundo grau. 

ConJur — Por quê?
Marcelo Semer —
Porque ela deixa cada vez mais distante a uniformização dos tribunais com a jurisprudência dos tribunais superiores. Ela cristaliza as decisões dos tribunais de cada estado.

ConJur — O que acha da execução antecipada da pena?
Marcelo Semer —
A prisão automática em segundo grau é inconstitucional. Considerando a realidade multiforme do país, ou seja, muito diferente em cada estado, a prisão em segundo grau arrebenta com toda a ideia de nacionalização da lei brasileira, porque aceita um regime típico norte-americano, só que sem um estado federativo de nível avançado como eles têm.

Além disso, vejo que vai contra nosso histórico de construção das reformas do Judiciário. Em 1988, foi criado o STJ para uniformizar a interpretação da lei federal e tirar isso da mão do Supremo. Em 2004, com a reforma do Judiciário, houve vários mecanismos de nacionalização, como o CNJ. Outro mecanismo é o fortalecimento do Supremo, com as ADPFs ou e a súmula vinculantes. Ou seja, foi sendo aumentada a nacionalização. E a prisão de segundo grau valoriza as jurisprudências locais”.

https://www.conjur.com.br/2019-mai-19/entrevista-marcelo-semer-juiz-substituto-segundo-grau-tj-sp

Jadson d'Pádua

A oposição é necessária para avaliar a gestão, mas é importante distinguir entre oposição legítima e politicagem, que busca causar problemas e confundir a população. É preciso ficar atento para não cair nesse jogo manipulador.

1.791 comentários sobre ““Estamos engrandecendo o encarceramento sem ter nenhum impacto na criminalidade”

  1. Wow that was odd. I just wrote an really long comment but after I clicked submit my comment didn’t show
    up. Grrrr… well I’m not writing all that over again. Anyways,
    just wanted to say great blog!

  2. Hello there! This is kind of off topic but I need some advice
    from an established blog. Is it very difficult
    to set up your own blog? I’m not very techincal but I can figure things out pretty quick.
    I’m thinking about making my own but I’m not sure
    where to start. Do you have any ideas or suggestions?
    With thanks

  3. We are a bunch of volunteers and starting a brand new scheme in our community.
    Your site offered us with helpful info to work on. You have
    done an impressive job and our whole group might be thankful to
    you.

  4. We absolutely love your blog and find nearly all of your post’s to be what precisely I’m looking for.
    Do you offer guest writers to write content to suit your needs?
    I wouldn’t mind creating a post or elaborating on a lot of the subjects you write
    about here. Again, awesome website!

  5. Good day! I could have sworn I’ve visited this web site before but after going through
    some of the articles I realized it’s new to me. Anyhow, I’m definitely pleased I found
    it and I’ll be bookmarking it and checking back regularly!

  6. This design is wicked! You definitely know how to keep a reader
    entertained. Between your wit and your videos, I was almost moved to start my own blog (well, almost…HaHa!) Great
    job. I really loved what you had to say, and more
    than that, how you presented it. Too cool!

  7. Magnificent items from you, man. I have be
    mindful your stuff prior to and you’re just too magnificent.
    I really like what you have got right here, certainly like what you are
    stating and the way by which you are saying it. You’re making it enjoyable and you
    still care for to keep it wise. I cant wait to
    learn much more from you. That is actually a terrific web site.

  8. Everytһing posted was actually very reasonable.
    However, consider this, what if үou added a little information?I aam not suggesting
    your information isn’t good, but wһat if you addеd a title that grabbed folk’s
    attention? I mean “Estamos еngrandecendo ο encarceramento sem terr nenhum impacto na criminalidadе”
    – Pernambuco em Focо is a little plain. You оught
    to ɡlance аt Yahoo’s home page and seee how thеy create ɑrticle
    headlines to get people intеrested. You might try adding a video or a
    pic or two to grab people excited about whаt you’ve written. Just
    my opinion, іt might make your pߋsts a little livelier.

  9. With havin so much content do you ever run into any problems of
    plagorism or copyright violation? My website has a lot of unique content I’ve either written myself or outsourced but it appears a lot of it is popping it up all over the web without my agreement.

    Do you know any techniques to help stop content from being
    ripped off? I’d certainly appreciate it.

  10. Great post. I used to be checking continuously this weblog and I’m impressed!
    Very helpful information particularly the ultimate section 🙂 I take
    care of such information much. I used to be seeking this
    certain info for a very lengthy time. Thank you and good luck.

  11. Greate post. Keep posting such kind of information on your blog.
    Im really impressed by your blog.
    Hi there, You’ve done an excellent job. I will certainly digg it and in my opinion recommend to my friends.

    I am sure they will be benefited from this web site.

  12. Hey there just wanted to give you a quick heads up. The words in your content seem to
    be running off the screen in Ie. I’m not sure if this is a formatting issue
    or something to do with internet browser compatibility but I figured I’d post to let you know.
    The layout look great though! Hope you get the issue fixed soon. Many
    thanks

  13. Oh my goodness! Amazing article dude! Thanks, However I am going through issues with your RSS.
    I don’t understand the reason why I can’t join it.
    Is there anybody else having identical RSS problems?
    Anyone who knows the answer will you kindly respond? Thanks!!

  14. I’d like to thank you for the efforts you’ve put in penning this website.
    I really hope to view the same high-grade blog posts
    from you later on as well. In fact, your creative writing abilities has encouraged me to get my own,
    personal blog now 😉

  15. Howdy! Would yoս mind if I sһare үour blog with my myspace group?
    There’s a lot of people that I think would really enjoy your content.

    Pleasе let me knoѡ. Thanks

  16. Wow, awesome blog structure! How long have you ever been running a
    blog for? you made running a blog glance easy.
    The total look of your site is wonderful, as neatly as the
    content material!

  17. Greate article. Keep writing such kind of info on your site.
    Im really impressed by your site.
    Hello there, You’ve done a great job. I will certainly digg it and individually suggest
    to my friends. I’m sure they’ll be benefited from this website.

  18. Hi there just wanted to give you a quick heads
    up and let you know a few of the images aren’t loading correctly.
    I’m not sure why but I think its a linking issue.
    I’ve tried it in two different browsers and both show the same outcome.

  19. My partner and I absolutely love your blog and find a
    lot of your post’s to be what precisely I’m looking for.
    Do you offer guest writers to write content for you personally?

    I wouldn’t mind producing a post or elaborating on some of the subjects you write in relation to here.

    Again, awesome site!

  20. Its like you learn my thoughts! You appear to grasp a lot about this, such as you wrote the guide in it
    or something. I feel that you can do with some percent to power the message house a little bit, however other than that,
    that is great blog. An excellent read. I’ll definitely be back.

  21. I’m not sure where you are getting your information, but good topic.
    I needs to spend some time learning much more or understanding more.
    Thanks for magnificent information I was looking for this information for my mission.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *