Por Antônio Carlos Will Ludwig
Tribunais de Justiça: A história de nosso país registra que, no período imperial, paisanos foram julgados e incriminados por servidores fardados, decorrente de participação em ações contestatórias e atos de rebelião. Nos primórdios da República aconteceram perseguições aos correligionários da falecida monarquia. Na década de 30, houve a ação do Tribunal de Segurança Nacional sobre os comunistas de então. Durante o período ditatorial, a Justiça Militar perseguiu civis acusados de crimes contra a segurança nacional e a ordem econômica. Desde a redemocratização do país, os processos se baseiam no Código Penal Militar e no Código de Processo Penal Militar. Atualmente, os fardados alegam que a retirada da competência da Justiça Militar poderá provocar a descriminalização de qualquer conduta cometida por civil contra as instituições militares e seus membros.
O STF estabeleceu que a submissão do civil, em tempo de paz, à Justiça Militar é excepcional, que só se legitima quando a conduta delituosa ofender bens jurídicos tipicamente associados às funções das Forças Armadas. Atente-se que, nos últimos anos houve mais de uma centena de processos contra paisanos acusados de crimes militares. No entanto, informações divulgadas apontam que a Justiça castrense revela condescendência ao julgar os fardados. Segundo consta, neste período, dos 29 processos criminais envolvendo militares, dez resultaram na suspensão da pena e em mais de 30 casos de homicídios praticados por eles não houve nenhuma condenação.
O julgamento de civis por militares é um procedimento que acontece em alguns países do mundo. Nos Estados Unidos, qualquer civil que ajude ou tente ajudar pessoas consideradas como inimigos pode ser julgado por cortes marciais ou comissão militar. Em Uganda, recentemente, o Tribunal Constitucional determinou que as cortes militares não podem mais julgar civis. Em Israel, o comandante da área ocupada tem um imenso poder legislador e autoridade judiciária sobre as instituições e pessoas.
Nos Estados Unidos, tal ocorrência reflete a expectativa majoritária da população. As Forças Armadas estadunidenses recebem um carinho especial dos cidadãos, seu prestígio perante a população é muito alto e os civis apreciam muito a adoção de soluções militares para os problemas cotidianos. Ademais, essa nação, consensualmente, se encontra bastante militarizada por causa dos acontecimentos de setembro de 2001. Quanto a Israel, sabe-se que suas Forças Armadas são consideradas as mais populares do mundo, e o país ocupa o primeiro lugar do planeta no ranking da militarização consentida devido ao fato de estar cercado de inimigos por todos os lados.
Observe-se, entretanto, que em algumas nações inexiste o julgamento de civis por militares e nem o julgamento de militares por militares, mas sim o contrário, isto é, o julgamento de militares por civis. Tal é o caso da Holanda, que, a partir dos anos 70 do século anterior, instituiu câmaras militares em tribunais civis com juízes paisanos especializados ao lado da presença de um juiz fardado. Na Alemanha, desde o fim de Segunda Guerra os atos criminosos cometidos por soldados são julgados em tribunais criminais comuns por juízes civis e as infrações menores se vinculam a tribunais administrativos. Tende a ser viável, portanto, sugerir que nossos militares delituosos também venham a ser sentenciados pelos tribunais da Justiça paisana. Para tanto é preciso que os juízes indicados para examinar processos relativos aos fardados recebam uma formação especializada. Se faz necessário também criar neles uma vara apropriada e contar com a presença de um juiz militar ao lado dos juízes civis.
Liberdade de Expressão: As Cartas Magnas dos países regidos pela democracia trazem em seu bojo o imprescindível direito à liberdade de expressão, o qual é relativo porque as ofensas verbalizadas por alguém contra outrem podem ser judicializadas. Porém, ao mesmo tempo, é absoluto porquanto os indivíduos mesmo tendo conhecimento das restrições legais e sabendo que podem sofrer impactos por causa delas falam o que consideram que deva ser falado e arcam com as consequências.
Tal como já foi dito, em países europeus onde existe a figura do cidadão de uniforme, todos os direitos atribuídos aos civis valem também para ele. Apenas o direito de greve ainda não foi regulamentado para os fardados. No entanto a Organização Europeia de Associações Militares e Sindicatos, desde há muito tempo, se encontra seriamente empenhada em obter este direito. Como não poderia deixar de ser o direito à liberdade de expressão já é garantido aos militares que frequentemente fazem uso dele em suas reuniões sindicais, nos meios de comunicação e em passeatas nas ruas destinadas a reivindicações e críticas, porém em trajes civis, longe dos quartéis e fora do horário de expediente.
Nos Estados Unidos, os militares também possuem o direito a essa exteriorização, porém ela apresenta características próprias. A ocorrência mais notória diz respeito à atitude da população. O elevado prestígio conferido pelos paisanos aos fardados contribui bastante para a construção da ideia de que eles exibem uma conduta apolítica mesmo quando exteriorizam um comportamento político. Auxilia muito também o notório uso do mecanismo da autocontenção por parte dos militares na área política.
Além disso, tais manifestações se encontram devidamente regradas pelo Departamento de Defesa, o qual estabeleceu que o militar pode emitir opinião pessoal sobre candidatos em eleições; fazer contribuição financeira a partidos políticos; participar de reuniões políticas, comícios, debates como espectador e não uniformizado; colar um adesivo político em um veículo particular; usar um distintivo político em trajes civis; assinar petições para ações legislativas específicas; encaminhar texto ao editor de um jornal expressando opiniões pessoais sobre determinados problemas ou candidatos; solicitar ou arrecadar fundos, quando não estiver uniformizado e fora da base, para uma causa política partidária ou candidato; expor sua adesão a determinado partido político, cuja maioria pende para o lado do republicano.
Em Israel acontece algo parecido aos Estados Unidos, porquanto os militares também podem fazer manifestações políticas. Entretanto, neste país o prestígio dos militares se encontra muito elevado, sendo o maior do mundo. Militares e civis praticamente não são vistos como personagens distintos porque a prestação do serviço castrense é bem longa e no decorrer dos anos aqueles que já serviram às Forças Armadas retornam periodicamente para a realização de treinamentos. Além disso os fardados estão sempre presentes em vários locais, circulam pelas ruas e praças, fazem exposições nas escolas, comemoram as datas cívicas junto com os paisanos e prestam inúmeros serviços à população rural e urbana. Reina no interior dos quartéis a norma da autocontenção que permeia a escala hierárquica e encontra respaldo no Ruach Tzahal, o código de ética rigorosamente seguido por eles, particularmente o tópico estabelecedor de que há que se tomar um especial cuidado para não injetar opiniões pessoais sobre questões sujeitas a controvérsia pública de natureza política, social e ideológica.
No Brasil a situação é bem diferente. Os regulamentos militares congruentes com o período ditatorial do passado não possibilitam aos fardados fazerem manifestações de caráter político-partidário. Entretanto, nossa Constituição estabelece a garantia da livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato. E o Supremo Tribunal Federal já asseverou que a liberdade de expressão se constitui em direito fundamental do cidadão, envolvendo o pensamento, a expressão dos fatos atuais ou históricos e a crítica. Ambas as determinações não instauram a diferença entre fardados e paisanos. Isto significa que tais regulamentos se mostram dissonantes ao regime democrático atual e à legislação mais elevada, necessitando então serem alterados. Tal ajuste deve prever uma normatização da liberdade de expressão e a inclusão do princípio da autocontenção, porquanto a distinção entre civis e militares ainda é muito forte e persistente.
Derradeiramente, cabe acrescentar mais dois tópicos. Um deles refere-se à atuação direta do parlamento sobre os militares o qual aparece como um procedimento bem adequado de submissão dos fardados aos civis. O exemplo vem dos Estados Unidos, onde o Congresso aprova anualmente a Lei de Autorização de Defesa, que determina o número de militares que podem permanecer na ativa e confere ao Senado a tarefa de referendar a promoção de oficiais generais. O outro diz respeito à ida de militares para trabalhar em órgãos do governo. Nos países democráticos eles se dirigem apenas aos setores onde cabe a presença deles. Na Argentina, por exemplo, a participação dos mesmos diminuiu bastante porque o fim da ditadura retirou deles a função de defesa interna. Em nosso país eles podem atuar no Ministério da Defesa e no Gabinete de Segurança Institucional, porém é necessário regulamentar o período de prestação do serviço. Quanto à promoção ao generalato a confirmação pelo Senado se mostra adequada haja vista que os cargos mais importantes da administração pública como o de ministro do Supremo Tribunal Federal e o de Procurador Geral da República exigem o aval desta instituição parlamentar. Diga-se de passagem, que é harmônica às práticas anteriormente expostas a recente proposta do ministro Lewandowski de incluir comandantes militares em processos de impeachment.
Enfim, é necessário ressaltar que as proposituras aqui apresentadas não são exóticas e mirabolantes, tampouco originais e inovadoras, porquanto constituem ocorrências bem sucedidas que vêm se manifestando em países regidos pela democracia desde há muito tempo. Apesar desses aspectos positivos, o emprego delas nas Forças Armadas brasileiras é uma tarefa bastante difícil devido à provável atitude de resistência de nossos militares e da conduta de desinteresse própria dos governantes. Note-se que apenas o cargo de ministro civil para a pasta da Defesa foi estabelecido pelo presidente eleito, que não pretende, em hipótese alguma, criar turbulências na caserna e cujo indicado recebeu boa acolhida em seu interior decorrente de suas qualidades e de seu perfil conciliador. Ademais, sua prioridade máxima é garantir a governabilidade. Cabe expor também que a tentativa de concretizar qualquer uma delas tem que ser pautada pelo diálogo, pela negociação, pelo convencimento e pela anuência dos servidores uniformizados, uma vez que nenhuma atitude impositiva vai conseguir alcançar o efeito almejado.