Por: Marcus Giovani Ribeiro Moreira (Advogado, Professor Universitário e Doutorando em Sociologia pela UFC)
No dia em que escrevo essas Memórias faz exatamente um mês que Mizael foi morto, e por uma dessas coincidências do destino ou “sincronicidade” (utilizando um termo da psicologia analítica), escrevo esse texto ouvindo a música “Logun Edé” de André Abujamra. Essa música faz menção a Logun Edé, divindade africana que é considerado um príncipe/caçador e pede para que ele nos proteja da tristeza.
Uma tarefa hercúlea, nos dias atuais e principalmente quando escrevo sobre um menino de 13 anos morto em uma operação da Polícia Militar do Ceará, no primeiro dia de um julho pandêmico de 2020, enquanto dormia na casa de sua tia no município de Chorozinho. Não conheci Mizael. Não tive essa alegria.
Tudo que sei sobre ele foi o que li nos jornais: que era um menino de 13 anos, que adorava a zona rural, sonhava em ser vaqueiro e ter um telefone celular e não gostava muito da cidade. Era um menino do campo, do sertão do Ceará. Um menino incomum, nestas épocas de ciberespaços, redes e conexões tecnológicas. Um menino beija-flor, como bem disse o jornalista Demitri Túlio, em uma de suas crônicas que aquecem o coração.
Na versão da polícia, Mizael foi confundido com um integrante de facção criminosa e executado pelo COTAR da PMCE, uma polícia especializada, “de elite”, que atua no interior do Estado. Na versão da polícia o “erro” aconteceu porque sua descrição coincidia com a de um bandido perigoso, chefe de facção. “Seria perigoso”, disse o policial que o assassinou, justificando o assassinato de um menino de 13 anos que dormia.
Em uma reportagem publicada pelo jornal O Povo no dia 08 de julho, após o incidente um policial teria dito: “fiz merda”. Segundo entrevista dada pelo sua avó, o menino beija flor, tinha três mães: sua mãe biológica, sua avó e sua tia. Essas três mulheres cuidavam dele. Davam amor como só as mães sabem dar. “Um menino que tem três mães não pode ser ruim e nem ter um revólver”, disse sua avó à imprensa.
O menino beija-flor foi morto pela mesma política de segurança que, menos de um ano antes, matou Juan Ferreira dos Santos, um menino negro do Serviluz, bairro da periferia de Fortaleza. Seu crime foi estar numa praça ouvindo música com outros adolescentes de sua idade. A polícia disse que tudo isso aconteceu porque os jovens estavam em uma atitude suspeita e resistiram a abordagem jogando paus e pedra, pois nessa política “cadeia ou cemitério” devem ser os desfechos dessas vidas “descartáveis”. A barbárie institucional parece estar devidamente legitimada.
Juan foi mais um jovem morto com um certeiro tiro na nuca, enquanto corria tentando se proteger com os outros jovens do arbítrio e da violência policialesca. “Cadeia ou cemitério”, mais uma vez, ecoou nos rincões cearenses, carregada pelo vento do Aracati. Um prelúdio do que aconteceria com Misael e que talvez aconteça com milhares de adolescentes pobres e negros no Ceará e no Brasil. Tiro na nuca, em respostas a pedradas, inventadas ou não.
Imagino que Misael deva ter sido muito amado por suas três mães, por seus familiares, por seus amigos, assim como Juan e outros tantos jovens assassinados no Brasil. Vejo o amor resistir à barbárie institucional. O mesmo amor que vejo no brilho dos olhos de Dona Edna, uma das mães da Chacina do Curió, quando fala de seu filho Alef, também morto pela polícia cearense.
Dona Edna fez do luto a sua luta e o seu amor de mãe sua forma de resistência. O amor como força motriz da vida, ressignificando o existir, ante a barbárie e o arbítrio. (Re)existir sempre, apesar de tudo. Penso na comunidade que Misael viveu e cresceu, abarrotada pela sua ausência imposta pelo terrorismo de Estado.
Passeio meu pensamento fatigado de uma espécie de dor sem nome, pelo quarto, pela cama (ou pela rede) de Misael, hoje esvaziada de sua presença. Faço uma elucubração sobre a dor dilacerante dessas três mães esperando a volta daquele menino que foi morto enquanto dormia. Uma espera vã por alguém que não vai mais voltar.
Uma espera que só as mães que perderam violentamente seus filhos conhecem. Rezo insanamente para que tudo não passe de um pesadelo e acordados num sobressaltado, possamos ver Mizael, Juan, Alef, Ingrid, Ágata, João Miguel e tantos outros, que tiveram suas vidas precocemente roubadas, na mesa esperando pelo café da manhã, para depois irem para escola e brincar com os amigos, como deve ser a vida dos jovens brasileiros. Como deveria ter sido. Como espero, motivado por uma ingênua e aquecida esperança. Que seja daqui por diante.
Imagino que, quando Misael chegou no Orum, foi ninado por três orixás – que substituíram suas três mães aqui da terra – até adormecer de novo, em paz, sem o risco de ser morto, ou ferido. Mizael, o Logun Edé, o menino pescador/caçador, que preferia o meio rural em vez da cidade, está agora protegido, de qualquer mal. Não gosto de histórias assim “pelo avesso, sem final feliz”, como bem disse o poeta. E por isso penso insana e insistentemente na felicidade, como uma teimosia clandestina e subversiva, principalmente nestas épocas de dor e ausências.
(Re)lembro a música de André Abujamra e recito como alguém que recita, teimosa e desesperadamente, um sortilégio, um mantra, uma oração: “Logun edé. Logun edé. Me protege da tristeza, me protege da tristeza. Logun edé que bom que é. Viver na alegria. Entender a dor, por que ela serve pra gente ser feliz depois”. Com amor, Gigio.
Postado Por : Das chagas Martins