Projeto de “Busca ativa” regulamenta a veiculação, na TV e na internet, de imagens e de histórias de crianças e adolescentes abrigados no país, que aguardam por uma família adotiva.
Há muito se discute o princípio dos laços da paternidade. Para alguns, seria o primeiro chute na barriga da mãe, a primeira ultrassonagrafia ou quando uma pequena mão envolve o dedo de um pai, o momento em que um elo de afeto e cuidado se fecha e alguém, de fato, se torna pai ou mãe. Pouco comum, essa ligação pode se fechar também por meio de uma tela de computador. Imagine conectar-se a seu filho, até então desconhecido, à distância, num campo de futebol ou por meio de um vídeo na internet, e, a partir dali, não ver-se mais sem ele? Foi assim para Dreide; E também para Alisson; O mesmo para Fátima, Meirele… Num anúncio de Facebook, viram imagens de seus filhos, apaixonaram-se e, meses depois, os receberam em casa, adotados. O roteiro, ainda incomum, se faz diário numa iniciativa pernambucana de incentivo à adoção por meio da “Busca ativa”, cuja premissa agora foi apresentada a todo o país, por meio do Projeto de Lei 11.248/2018, apresentado nesta quinta-feira (20), na Câmara dos Deputados, em Brasília.
A iniciativa pioneira teve início com a campanha “Adote um pequeno torcedor”, em 2015. Junto aos jogadores do Sport Club do Recife, entravam em campo crianças mais velhas, disponíveis para adoção mas não integrantes do grupo prioritário de buscas, que vai de 0 a 5 anos. Ao fim da temporada, 100% de adoção. A ação cresceu e hoje atua por várias frentes, a mais acessível delas por meio do Facebook, na página da Comissão Estadual Judiciária de Adoção de Pernambuco, a Ceja-PE. Nela, fotografias, vídeos e histórias de vida de grupos de irmãos, crianças fora da faixa etária mais procurada ou que apresentam algum tipo de deficiência se apresentam, descrevem seus próprios perfis e buscam uma família. E o país inteiro responde. Quando há interesse, acelera-se o processo e os potenciais pais passam por todas as etapas de adequação, avaliação e habilitação. Então, inicia-se um estágio de convivência e seguem-se os trâmites para concluir a adoção.
Esse tipo de ação, no entanto, só é possível por meio de uma autorização judicial prévia. No caso do Recife, um dos defensores desse modelo de adoção, que envolve a exposição da imagem das crianças, é o juiz Élio Braz. “A criança é um sujeito de direitos. Eu autorizo que a criança seja vista, que fale. Ela tem que ser ouvida. É melhor que seja exposta e consiga uma família do que exista todo esse pudor e ela fique sempre num abrigo”, resume. A declaração se dá por conta do que é recomendado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em reservar-se sempre a imagem do menor de 18 anos.
É um dos pontos justamente alterados pelo projeto de lei da Busca ativa, de forma a dar subsídios que esse tipo de trabalho, fruto de iniciativas individuais de magistrados, estejam amparados por força de lei. Isso significa que fotografias, com seus perfis, bem como entrevistas poderão ser exibidos em todas as formas audiovisuais bem como nas redes sociais que a frente de adoção do município julgar apropriada. “Queremos garantir a formação de novas famílias e de uma oportunidade de recomeço para inúmeras crianças que vivem uma rotina de espera em casas de acolhimento em todo o país. É um recurso poderoso que vem a se somar às outras frentes porque o pretendente conhece o potencial filho antes de qualquer lugar do mundo e não por uma ficha cadastral, mas de fato o vê”, defende o deputado federal Augusto Coutinho (Solidariedade/PE), autor do projeto de lei, bem como da Nova Lei da Adoção, em vigor desde novembro de 2017.
Família unida “por uma tela”
Aos 37 anos, a comerciante Dreide Michelle Vila Nova Mota já não conseguia mais esperar. Há oito anos, tentava junto ao marido, o consultor de gestão Alysson Eduardo Barros, 38, conceber filhos, sem sucesso. Ela desenvolveu um problema nos ovários, enquanto ele não dispunha de espermatozoides em quantidade ou mobilidade suficiente para fecundá-los. As chances foram ficando nulas. Quando cogitaram adotar, a busca se deu pela internet. Durante uma preparação para possíveis adotantes, a página da Ceja-PE foi mencionada. Ali mesmo, no meio da aula, começaram a olhar as crianças que pediam por uma família. Não demorou para que batessem os olhos em Nilton, 11, Nívea, 8, e Nicole, 5. “Foi engraçado que naquele momento me bateu uma coisa de ‘são eles’”, lembra ela. “Não sei o que tinham de diferente. Mas vimos muitas crianças. E queríamos um filho, dois no máximo e, sem explicação, sabia que eram eles três”, completa.
Expostos pela iniciativa de busca ativa, o trio estava em fase de encontros com um outro casal, disposto a adotá-los. “Vai dar errado, viu?”, ela disse ter alertado à assistente social que os acompanhavam. “Eles são nossos. Pode escrever”. E foram. Entre 17 de maio e 6 de junho de 2018, foram quatro visitas supervisionadas e, então, tiveram um final de semana para montar quartos, adaptar apartamento e, a maior das mudanças, virar a “chave” e tornarem-se pais. “Eu não sei o momento em que tudo mudou, mas sei que rapidamente não consegui mais me imaginar sem eles”, explica Alysson. “Na verdade, não consigo pensar em como a gente existia antes deles”, completa.
Amores em dobro
Brenno Samuel Silva Alves, 13, anda de skate. Jonnas Guylherme, de mesmo sobrenome, aos 11 anos, repete cada movimento. O mesmo vale na hora de jogar videogame. Mais ainda, para dobrar papéis em arrojadas esculturas seguindo a milenar arte do origami. O movimento espelhado, aprenderam de uma infância quase toda “crescida” num abrigo. Eram as principais referências um do outro. Em entrevista antes de terem a foto publicada na internet em busca de família, diziam gostar de esportes, de jogar bola e que queriam era uma mãe. Ganharam duas.
Fátima Silva, 50, e Meirele Alves, 32, buscavam uma única criança – e de, no máximo, três anos. Uma sempre quis ser mãe, a outra, nunca. Ao menos até há três anos, quando o sentimento mudou profundamente. “Eu não estava pronta antes, mas quando fiquei, não tinha mais espaço para dúvidas. Só que não havia criança pra gente”, lembra Meirele. Numa rede social, bateram, juntas, os olhos em Brenno e Guylherme. Não falaram. Houve quase um dia de silêncio. Quando se olharam, acenaram. “Foi amor à primeira vista”, conta.
Em um mês, reformaram a casa e passaram a ser mãe de dois. E não quaisquer dois. Meninos, cheios de vontade, opinião e um punhado de vícios de comportamento herdados de um mundo que ambas desconheciam. “A adaptação foi difícil. Lembro de chorar muito, de até chegar em desistir. Mas a gente já amava. Não tinha mais o ‘pensar duas vezes’. Era um trabalho contínuo que, graças a Deus, deu certo. Eles são outros hoje, educados, estudiosos. Hoje, tenho a família que sempre sonhei”, afirma Fátima, fazendo questão de desmistificar apenas o lado “fofo” da missão e exaltando o sentimento: “Nem tudo são rosas. Mas hoje sou mais humana, sou uma pessoa melhor por ser mãe. E quem disse que amar é fácil?”.
Quando a lei estimula a adoção
Em vigor desde abril de 2018, a Lei 13.519/2017 ficou conhecida como Nova Lei da Adoção e, entre as prioridades que torna legal, estão a aceleração de todos os processos para habilitação de potenciais pais, limitando-os a um prazo de 120 dias, a garantia de direitos trabalhistas, como licenças maternidade e paternidade, para novos adotantes, bem como a priorização da adoção de grupos de irmãos e crianças com deficiência. Para cumprir os prazos, tribunais de todo o país tiveram que adequar-se, criando novos setores para a adoção ou destinando funcionários especificamente para esse fim, a exemplo do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Na prática, o Projeto de Lei da Busca Ativa vem complementar a iniciativa da Lei da Adoção, acelerando também a “fila” do lado das crianças que aguardam por oportunidade.
Em todo o país, atualmente há 9.296 menores de 18 anos disponíveis para adoção, e 44.961 pais cadastrados como potenciais adotantes, segundo o relatório de dados estatísticos do Cadastro Nacional de Adoção. Vários são os fatores que impedem da conta bater. O principal é que, desse total, apenas 2.965 crianças possuem até 6 anos, representando 31,9% do total disponível. E, no entanto, somente 14,5% dos pretendentes se apresentam como dispostos a receber filhos acima dessa faixa etária. O mesmo ocorre com o fator cor, uma vez que 92% dos pretendentes aceitam crianças brancas, mas apenas 55% aceitam negras. E, na prática, apenas 32,8% dos menores cadastrados são brancos.
De acordo com o juiz da 2ª Vara do Recife, Élio Braz, a Lei da Adoção veio complementar a Lei 12.010/2009, no sentido de reduzir o tempo de abrigamento, sem família das crianças. “A lei veio salvar crianças do esquecimento em casas de acolhimento. Se os processos demoram, as crianças ficam mais velhas e acabam entrando na faixa de mais dificuldade de adoção”, explica. Foi o magistrado que autorizou algumas das primeiras experiências de busca ativa no país, o que lhe rendeu críticas, inclusive de que estaria transformando crianças em um produto comercial ou televisivo. “Só quem tinha acesso à história dessas crianças eram os profissionais. Elas não podem ficar invisíveis, têm que ser ouvidas. Se quero uma família para aquele menor abrigado, tenho que ir atrás. A busca ativa não é uma busca por criança, mas por pais. E as mídias, inclusive sociais, são meios de alcançar esse objetivo”, ressalta.
DADOS
Brasil
Crianças cadastradas 9296
Pretendentes cadastrados 44961
Pernambuco
Crianças 388
Pretendentes 1263
Crianças
Norte 404
Nordeste 1386
Centro-oeste 815
Sudeste 3893
Sul 2798
Meninas 4296
Meninos 5000
Pretendentes
Norte 1635
Nordeste 5921
Centro-oeste 3349
Sudeste 21419
Sul 12637
Fonte: CNJ
Créditos das fotos: Shilton Araújo/Divulgação