Existem no Brasil mais de dez maneiras de estabelecer uma candidatura fictícia para fins de cumprimento da cota de 30% de mulheres nas eleições proporcionais. Ela pode ser involuntária (quando a mulher nem sabe que está concorrendo), aparente, desertora, induzida, coagida e até voluntária (quando a própria candidata aceita fazer parte da fraude, para ajudar algum candidato ou obter benefícios próprios).
A responsável por fazer esse mapeamento inédito é Roberta Laena, autora do livro Fictícias: candidaturas de mulheres e violência política de gênero (2020).
A publicação surgiu de tese de doutorado na UFRJ e foi feita a partir de entrevistas com candidatas fictícias e da experiência prática da autora, servidora da Justiça Eleitoral do Ceará com mais 15 anos de experiência.
Para ela, se a realidade política brasileira mostra alguma coisa, é que, apesar dos melhores esforços legislativos e judiciais, os partidos continuam aprimorando as maneiras de burlar a cota de gênero. Nesse contexto, reforçar o combate às candidaturas laranjas é focar no acompanhamento dos atos efetivos de campanha.
“A campanha exige uma organização, pessoas envolvidas, material de divulgação, custos. Como você se elege sem fazer um evento? Uma reunião? Aprimorar o controle dos atos de campanha seria um elemento a mais para dificultar as fraudes”, diz ela.
Roberta Laena reconhece que há avanços nesse tema. Segundo ela, o Tribunal Superior Eleitoral fixou critérios bastante razoáveis para identificar tais fraudes. Apesar disso, o rigor jurisprudencial não é capaz de aumentar a confiança em um avanço real da participação feminina nas eleições deste ano.
Os números não animam muito. Das 29,1 mil candidaturas já registradas, 9,8 mil — ou 33,7% — são de pessoas que se identificam com o gênero feminino. “É praticamente a cota”, diz Laena. É preciso educar mais, investir mais, inclusive fora do ano eleitoral. E sem perder os avanços já experimentados.
“O que temos notado é os partidos mais atentos. Antes, não havia condenações. É um recado muito forte. É o TSE dizendo: não faça isso. Meu receio é que isso leve para um outro lugar: que os partidos aprimorem a burla à cota de gênero. É preciso mostrar que fez campanha. Candidaturas reais fazem muita campanha. Quando há poucos atos, você sabe que não é real”.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Seu livro Fictícias: candidaturas de mulheres e violência política de gênero cita a fraude à cota de gênero nas eleições como manifestação da violência política de gênero. De que maneira isso acontece?
Roberta Laena — A violência politica de gênero, apesar de ser recente na legislação brasileira, vem sendo discutida há um tempo na América Latina. É a manifestação contra os nossos direitos políticos em qualquer tempo: seja da eleita, da candidata ou antes disso. Eu posso ter meus direitos atingidos mesmo sem ser candidata. Percebi que a candidatura fictícia instrumentaliza as mulheres. Qual mensagem que ela passa? É o partido dizendo que nós, mulheres, não servimos para a política, não temos aptidão; que a política é do homem, então a mulher é usada apenas para cumprir a cota de gênero; que se a legislação diz que o partido só pode concorrer se tiver no mínimo 30% de cada gênero, então o partido faz uma negociação: você me ajuda nisso e eu te instrumentalizo; que você serve ao partido, mas eu financio e elejo os mesmos homens de sempre.
Por que não escolher mulheres reais e investir para que tenham potencial? E a instrumentalização da mulher é uma violência mais forte quando a mulher tem seus dados usurpados. Há mulheres que sabem. Entrevistei mulheres e várias me disseram: sou amiga do prefeito, então concorri para ajudar. E sem nenhum tipo de noção da violência que isso é. Ela foi ajudar o partido a continuar financiando candidaturas masculinas. Mas algumas não sabem. Conheci algumas que se descobriram candidatas. Essa violência é a mais clara de todas. Você não é candidata, não quer aquilo e seu nome está lá.
ConJur — Ao citar seu livro em julgamento recente no TSE, a ministra Maria Cláudia Bucchiaeri levantou a discussão sobre a banalização da imposição de inelegibilidade às mulheres que participam de fraude à cota de gênero nas eleições, mesmos sem saber se foram cooptadas ou não. Acredita que existe essa banalização?
Roberta Laena — Lá em 2019, quando o TSE proferiu o acórdão paradigma sobre o tema no caso de Valença (PI), ficou muito clara a finalidade pedagógica de cassar todo mundo. E aí eu concordo com essa posição, no sentido genérico. No caso, a ministra se referia às varias possibilidades de candidaturas em que as mulheres são vítimas. Encontrei na minha pesquisa mais de dez tipos de candidaturas. Quando você vai para o caso concreto, muitas delas sequer sabem que são candidatas.
Em 2018, houve um caso em que mãe e filha foram colocadas como candidatas. Um vizinho as descobriu na listagem e disse: “Olha, vou votar em você”. Como assim? Mãe e filha estavam lá, numa montagem mal feita, vestindo paletó e gravata, como candidatas, uma a deputada federal, outra a deputada estadual. E sem saber. Já fui chefe de cartório, já vi muitas mulheres que não sabiam que foram candidatas. Elas chegavam pra pedir quitação eleitoral, tinha lá que estavam devendo a prestação de contas, mas não sabiam nem o que era isso.
O que a ministra reportou é que, diante dessa constatação, não se pode generalizar e dizer que sempre deverá ser inelegível. Existem muitos casos de mulheres que sequer sabem que são candidatas. Só o caso concreto vai poder dizer se é para ser declarada a inelegibilidade. É o que vem acontecendo nos tribunais.
ConJur — No mesmo voto, a ministra Bucchianeri diz que seu livro cita novas modalidades de fraudar a cota de gênero. Existe uma evolução desse tipo de ilícito?
Roberta Laena — Percebemos uma evolução da maquiagem que os partidos fazem para burlar a cota de gênero. Tenho mais de 15 anos de Justiça Eleitoral. Quando eu entrei, vi muitos processos de candidata com zero voto e zero gasto. Lembro do espanto de não entender como uma candidata tinha zero gasto. O tempo foi passando e hoje, se pegarmos qualquer prestação de contas, não encontraremos mais gasto zerado. Os partidos entenderam que precisam maquiar essa candidatura. Se antes tinha zero voto e zero real gasto, hoje há candidatas com 15 votos, 30 votos, 40 votos. É pouco, mas tem alguma coisa registrada. E elas têm gastos. Aí a prática é imprimir um santinho, fazer uma bandeira.
Há alguns votos em julgamentos que até mencionam, por exemplo, a sequência numérica das notas fiscais na prestação de contas, mostrando a semelhança das contas de várias candidatas fictícias — mesmas despesas, mesmos valores, mesmas datas de emissão das notas fiscais etc. Aí você percebe os partidos aprimorando a burla. Ao mesmo tempo, encontramos mulheres no Facebook fazendo propaganda para homem. A partir dessa análise, você entende que, mesmo com alguns votos, aquilo não era real. Principalmente isso com redes sociais. É muito fácil de ver. Qual candidato não faz campanha por rede social? Essas mulheres não fazem. Não fazem evento.
ConJur — A fraude fica menos sutil…
Roberta Laena — Quem faz eleição, nos municípios principalmente, sabe quem é real e quem não é. Sabemos quem tem denúncia no Pardal (aplicativo da Justiça Eleitoral para denúncia de propaganda eleitoral irregular), quem tem pedido vai ao cartório, quem participa da audiência de distribuição do horário eleitoral. Todos esses elementos são importantes para, no caso concreto, verificar que candidatura é real ou não. Para responder a sua pergunta: sim, há uma evolução. Tanto conseguimos cada vez mais descobrir vários tipos de burla, como também estamos percebendo que não vai ser tão simples fazer isso porque os partidos estão aprimorando a forma de esconder a candidatura fictícia.
ConJur — Ao longo dos anos, o TSE fixou critérios para identificar casos de fraude à cota de gênero: votação zerada ou ínfima, prestação de contas com movimentação ínfima ou idêntica a outras candidatas e ausência de atos de campanha. São critérios razoáveis? Falta algum?Roberta Laena — São critérios muito razoáveis. A legislação poderia aprimorar a questão do controle de atos de campanha. Hoje, é fácil criar um perfil falso em rede social, botar uns cards, fazer um vídeo pedindo voto e imprimir uns santinhos: pronto, está simulada a candidatura. A campanha exige uma organização, pessoas envolvidas, material de divulgação, custos de transporte. Como você se elege sem fazer um evento? Uma reunião? Talvez, de alguma forma, aprimorar o controle dos atos de campanha seria um elemento a mais para dificultar as fraudes. Mas, analisando o que se tem, é bastante satisfatório, até para além do esperado. Nas primeiras decisões, olhava-se só para o gasto e para o voto. Hoje em dia, até os santinhos iguais, a sequência numérica das notas fiscais, tudo está sendo olhado. É bom. Mas podemos sempre aprimorar, e acho que o caminho são os atos de campanha.
ConJur — Em um julgamento mais recente, o ministro Alexandre de Moraes sugeriu que os candidatos nas eleições proporcionais fiscalizem os próprios partidos, já que a fraude à cota de gênero pode derrubar toda a chapa. Isso é necessário?
Roberta Laena — Não temos na Justiça Eleitoral, nem no Ministério Público, condições de dar conta de tudo. Até em termos principiológicos da propaganda eleitoral, a regra é a liberdade. Nessa perspectiva, a ideia é que as denuncias sejam feitas pelos oponentes. É um período muito curto, com elevado numero de demandas e atribuições, equipes reduzidas, não tem como ser diferente. Não é o mundo ideal, mas é o que temos de lidar à luz da realidade. O ideal é que os partidos se fiscalizem. E não só nesse tema. O que temos é um suporte mais aprimorado nos meios de fiscalização. Temos o Pardal para fiscalizar a propaganda. O MPF criou um canal específico de denúncias de violência política de gênero para essa eleição. O ideal é que partidos e candidatas fiquem atentas para essas fraudes e que possam fazer esse tipo de denúncia.
ConJur — Acredita que os dirigentes partidários devem constar nesses processos, com risco de punição?
Roberta Laena — Não acho que dirigentes devam estar. Porque, pela lei, a previsão é para candidatos e beneficiários. Não sei se seria uma medida adequada. Temos a regra constitucional da autonomia partidária. Não podemos desconsiderar isso. Em razão dessa autonomia, não há uma fiscalização mais efetiva e de impacto que controle o funcionamento dos partidos. Nem sei até que ponto isso poderia acontecer, salvo com mudança na lei. Nos moldes de hoje, seria muito difícil ser constitucional algo de uma intervenção maior. Isso faz com que tenhamos problemas de todo tipo, como essas filiações fictícias. E acho que há uma blindagem. A autonomia partidária é importante, mas blinda, de certa forma, algum tipo de intervenção.
ConJur — O Congresso promulgou a Emenda Constitucional 117/2022, que impõe a cota de 30% do Fundo Eleitoral e do FEFC para candidaturas femininas, o que era uma determinação do STF. Mas também anistiou quem não cumpriu a cota até então. Ficou melhor ou pior para as mulheres na política?
Roberta Laena — Não podemos deixar de comemorar a constitucionalização da cota de gênero. Mas com a anistia não tem como concordar. Não só essa, como todas as anistias feitas e que sempre acabam em desestímulo. As ações afirmativas em prol da participação feminina na política são uma luta de muito tempo, mas sempre esbarram nas anistias. E vai continuar acontecendo. Não é a medida mais adequada e correta. É um desserviço, porque incentiva por um lado, mas por outro dá um balde de agua fria. Não contribui em nada para a causa, que precisa evoluir muito mais, ainda.
ConJur — A Lei 14.192/2021 criminalizou a violência política de gênero. O TSE tem um protocolo de ação para combater esse tipo de violência em 2022. Toda a normativa parece estar mais afinada. Chegou a hora de ver um salto da participação feminina na política?
Roberta Laena — Não acho que chegou a hora. Ela só vai chegar quando tivermos reserva de assento. As cotas de gênero não dão conta da realidade e, diante dessas fraudes todas, não vamos avançar, por mais que o rigor nas decisões seja muito importante. Dados do TSE para a eleição desse ano mostram quase 35% de candidaturas femininas. É para comemorar. Mas, se temos só isso depois de tanto que foi feito, você percebe que é praticamente a cota. Espero estar errada. Enquanto não tivermos reserva de assento com cadeiras marcadas para gêneros, não avançaremos tanto. A perspectiva não é das melhores.
Agora, com certeza o que notamos é os partidos mais atentos. Não tínhamos condenações e agora temos muitas. É um recado muito forte. São os tribunais dizendo: não faça isso. Meu receio é que isso leve para outro lugar: os partidos podem aprimorar as burlas. É preciso mostrar, mesmo, que fez campanha. Candidaturas reais fazem muita campanha. Quando há poucos atos, você sabe que não é real.
ConJur — Acredita que falta dar uma atenção à situação das pré-candidatas?
Roberta Laena — Não só para as pré-candidatas. Temos uma campanha no TRE-CE para incentivar mais mulheres na política desde muito antes do pleito. Começamos a fazer cursos pensando nas eleições de 2024, estimulando para que as mulheres se preparem. Para além das pré-candidatas, é importante que partidos incentivem, financiem e preparem as mulheres com antecedência. Porque o que sempre dizem é: não há mulheres interessadas. Pensando nas cidades pequenas e médias, temos de levar em conta que a vida partidária tem peculiaridade diferente das capitais. Há partidos sem sede, que se reúnem na casa de alguém ou que nem se reúnem, ficam fechados e reabrem perto das eleições. Aí não há vida partidária que possibilite essa formação permanente.
Quando dizem que não há interessadas, eu pergunto: o que seu partido fez para que elas tenham condição de participar? Interesse, várias delas podem ter. Mas ter condição diante das dificuldades de atribuição doméstica, de filhos, de jornada dupla — diante da condição do estado patriarcal, o que seu partido fez para incentivar mais mulheres? Quantos cursos? Quantas palestras? Quantas mulheres em cargo de direção? Essa é a pergunta que tem de ser feita. Na eleição, as candidaturas começam a se viabilizar em fevereiro. Se deixar para esse momento, é claro que vai ser difícil encontrar mulheres. É preciso incentivar e proteger as mulheres desde sempre. A lei vem exatamente para proteger as mulheres de todo tipo de violência política.
ConJur — Como avalia a Lei 14.192/2021, que criminalizou a violência política de gênero?
Roberta Laena — A lei vem para proteger a mulher de todo tipo de afronta em qualquer época. Falo isso na perspectiva geral do conceito da lei. E faço uma crítica: ela precisa ser alterada porque, no tipo penal, quando vai para a parte do crime, ela se atém às mulheres candidatas e eleitas. É uma falha gravíssima. O artigo 326-b é o que traz tipo penal e usa poucos verbos. No caso de morte, por exemplo. Não é crime (de violência política de gênero)? Esse tipo não está lá. É uma lei importante, comemoramos e divulgamos muito, mas precisa de ajustes para, na perspectiva criminal, ter uma amplitude maior. Se a candidatura fictícia é descoberta antes e houver a desistência, não há crime? Há muitos questionamentos.
https://www.conjur.com.br/2022-set-18/entrevista-roberta-laena-servidora-justica-eleitoral