Por Ricardo José Macedo de Britto Pereira
Elizabeth Anderson, professora da Universidade de Michigan, publicou interessante estudo em que denuncia o excessivo controle dos empregadores sobre a vida dos trabalhadores, cujo título, em tradução livre, é Governo Privado: Como os Empregadores Regram as Nossas Vidas (E Porque Não Falamos Disso). O controle é absoluto, de modo que alcança espaços de autonomia que, em princípio, estariam livres de punição pelo empregador. Verifica-se, por exemplo, na determinação de vestimenta e da aparência, no cumprimento das metas, na vigilância dos meios de comunicação, nos padrões de comportamento, inclusive na vida privada dos trabalhadores e no horário não destinado a trabalho, como relacionamento pessoal e opção política. O termo governo privado pode parecer ambíguo porque governo se relaciona à esfera pública, mas o exercício de autoridade na empresa é comparável ao do poder público, embora o titular de poder no âmbito privado não seja escolhido pelos subordinados nem tampouco presta contas de suas atividades.
O mais curioso é que Anderson não retrata as relações de trabalho no século 19, em que predominava a ideia de relações especiais de poder, segundo as quais as empresas observavam disciplina rígida como a adotada em centros de internação médicos e prisionais e círculos militares. O quadro descrito é atual, em pleno século 21, tempos após renomada doutrina trabalhista, capitaneada por Uriarte, Dal-Ré, Romagnoli e Däwbler, propagar aos quatro ventos que os trabalhadores não se despem da condição de cidadãos ao atravessarem a porta da empresa e, consequentemente, não perdem o status de sujeitos de direitos fundamentais no local de trabalho. De fato, o Direito do Trabalho evoluiu para neutralizar o excessivo controle sobre a pessoa trabalhadora, mas, na prática, ele não desapareceu e até ampliou as fronteiras de incidência, de forma velada, guardando certa discrição em razão da desconformidade com o direito.
Não obstante, em ano eleitoral, explodiram no Brasil práticas de interferência na esfera privada das pessoas trabalhadoras: o assédio para votar em determinado candidato, a adoção de represálias em razão da escolha política em desconformidade com a orientação ou preferência do empregador e a determinação para participar em atos questionando o resultado das eleições. Essas práticas foram adotadas a luz do dia, sem constrangimentos, e sua difusão foi naturalizada, invocando-se apoio numa visão ampliada de liberdade de expressão. Empresários entenderam poder definir a escolha política dos trabalhadores por sentirem-se protegidos pelo direito fundamental de expressarem suas opções políticas e os possíveis cenários e impactos das eleições nas relações de trabalho. Essas práticas foram, inclusive, arquitetadas em redes sociais para que sua difusão pudesse efetivamente influir no processo político e no resultado das eleições. Segundo dados fornecidos pelo Ministério Público do Trabalho e noticiados pela imprensa, 3.206 denúncias de assédio eleitoral foram recebidas no ano de 2022, o que gerou mais de mil recomendações, 80 ações civis públicas e 300 termos de ajustes de conduta.
A novidade criou alguma dificuldade em seu enquadramento jurídico e atraiu o tipo criminal, especialmente o artigo 301 do Código Eleitoral, que prevê a pena de até quatro anos de reclusão e multa para a prática de “usar de violência ou grave ameaça para coagir alguém a votar, ou não votar, em determinado candidato ou partido, ainda que os fins visados não sejam conseguidos”. O mote para o combate baseou-se no slogan “Assédio Eleitoral é Crime”. No entanto, ameaça, retaliação ou promessa de vantagens a trabalhadores para assegurar o alinhamento eleitoral às imposições do empregador possui disciplina própria no campo do Direito do Trabalho: a discriminação por opinião política, que inclui o assédio eleitoral. A discriminação se concretiza na hipótese de ameaça ou promessa de benefícios, sua efetivação ou ausência de providências para impedir sua difusão no ambiente de trabalho por quem detém o poder de determinar as condições de trabalho, no intuito de direcionar o voto, retaliar posições políticas divergentes ou forçar e financiar participação em protestos políticos.
O assédio praticado em razão de quaisquer dos fatores de tratamento diferenciado proibidos por lei constitui prática discriminatória no trabalho. A Suprema Corte Norte Americana, por exemplo, em Meritor Savings Bank v. Vinson (1986), ao examinar caso de assédio sexual, considerou que a prática dá origem a ambiente de trabalho hostil e, como tal, constitui hipótese de discriminação por sexo, que é proibida pela legislação trabalhista federal dos Estados Unidos.
As leis brasileiras trabalhistas não mencionam expressamente a discriminação por motivos políticos. Mas ao mesmo tempo não excluem essa modalidade, considerando que as hipóteses de discriminação são exemplificativas e não taxativas. A Lei 9.029, de 1995, menciona “sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros”. Já a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho, convenção fundamental ratificada pelo Brasil, que trata da discriminação em matéria de emprego e ocupação, prevê que o termo discriminação engloba “toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão”. Com status supralegal, a Convenção 111 agrega à Lei 9.029, de 1995, a discriminação baseada na opinião política de trabalhadores. Sendo assim, qualquer postura ou punição no intuito de controlar o voto, retaliar em razão de escolha política ou determinar participação em protestos políticos são nulas de pleno direito e eventual despedimento dá ensejo à reintegração com ressarcimento integral do período de afastamento ou indenização em dobro, além de dano moral.
A narrativa empresarial calcada na liberdade de expressão visa capturar a subjetividade e cidadania dos trabalhadores, desvirtuando e privatizando o processo democrático para submetê-lo aos interesses e a serviço das empresas. O dano causado pela discriminação eleitoral afeta às vítimas diretas e toda a comunidade, devendo ser reparado individual e coletivamente, por meio de ações individuais e coletivas propostas pelo Ministério Público do Trabalho, pelos sindicatos e demais legitimados.
Não existe proteção à liberdade de expressão para cometer crimes, discriminar ou ofender pessoas. O Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, ratificado pelo Brasil, ao tempo em que assegura a liberdade de expressão que engloba o direito de “receber e difundir informações e ideias”, prevê a possibilidade de restrição para “assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral pública”. O pacto, além disso, proíbe propaganda de guerra ou “apologia ao ódio nacional, racial ou religioso, que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência”.
A discriminação eleitoral, com todo o seu potencial ofensivo, equivale à imagem da guerra interminável na distopia orwelliana de 1984, já que o objetivo do grupo dirigente não é a vitória, mas a preservação da estrutura social e de poder baseada na pobreza e na ignorância dos oprimidos. A discriminação eleitoral deve ser combatida no âmbito criminal pelas esferas competentes quando for o caso, mas a prática possui regramento próprio e autônomo no âmbito trabalhista para prevenir ou punir de forma exemplar sua ocorrência e resgatar os valores da democracia e cidadania.