Promulgou-se em Portugal, no último dia 14 de agosto — e para entrar em vigor após 180 dias da publicação —, a Lei 49/2018, que estabelece o instituto do “maior acompanhado” e elimina do Código Civil a interdição e a inabilitação. Além da codificação civil, sofreram também alterações o Código de Processo Civil, o Código do Registo Civil, o Código Comercial, a Lei de Saúde Mental, entre diversas outras normas.
A Lei do Maior Acompanhado estabelece um regime jurídico mais flexível em relação às pessoas com algum tipo de limitação psicofísica, especialmente em virtude de deficiência. Na doutrina já se apontava essa tendência geral, para a qual concorre também uma franca tentativa de eliminar os rigores do instituto da interdição[1].
O principal aspecto da Lei está em seu artigo 2º, que estabelece as modificações no Código Civil. De acordo com a redação dada ao artigo 138 do CC (que até agora cuida da interdição), “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.
Os objetivos do instituto vêm estampados no artigo 140º: “1 – O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença”. O acompanhamento “é decidido pelo tribunal, após audição pessoal e direta do beneficiário, e ponderadas as provas” (artigo 139º, 1), podendo ser determinadas medidas de acompanhamento provisórias e urgentes em qualquer fase do processo (artigo 139º, 2).
O requerente do acompanhamento é o próprio beneficiário, ou o cônjuge, ou o companheiro, ou ainda parente sucessível, todos estes últimos com autorização da pessoa com limitação. Pode ainda o Ministério Público requerer o benefício, neste caso dispensada a autorização (artigo 141º, 1).
Um ponto merece especial atenção. Segundo o artigo 140º, 2, a autorização do beneficiário pode ser suprida pelo tribunal, “quando, em face das circunstâncias, este não a possa livre e conscientemente dar, ou quando para tal considere existir um fundamento atendível”. Isso significa que a legislação reconhece a possibilidade de a pessoa não ser capaz de dar livremente sua vontade autorizativa. Esse aspecto não é nada desprezível, especialmente se se considerar a congênere brasileira Tomada de Decisão Apoiada, aparentemente lastreada na onírica crença de que a pessoa com deficiência — excetuando-se casos muito graves — sempre será capaz de participar da formação do negócio jurídico do qual derivará o apoio a ser concedido.
Volte-se à lei portuguesa. O acompanhante será escolhido “pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, sendo designado judicialmente” (artigo 143º, 1 do Código Civil). Como se vê, há uma diferença entre requerer a medida de acompanhamento e escolher o acompanhante (algo que não se verifica no Direito brasileiro, ou pelo menos não nesses exatos termos). O número 2 do artigo 143 determina um conjunto de possíveis acompanhantes para o caso de falta de escolha, sempre se considerando aquela pessoa “cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário”. Dentre essas pessoas estão o cônjuge, o unido de fato, os pais ou pessoa designada por eles, filhos maiores, avós, entre outros.
O artigo 145 cuida do âmbito e conteúdo do acompanhamento, determinando que este “limita-se ao necessário”. O tribunal poderá cometer ao acompanhante regimes diversos, com base no caso concreto e independentemente do que se tenha pedido. Dentre tais regimes estão o exercício das responsabilidades parentais; a administração de bens; a autorização para a prática de determinados atos ou categorias de atos.
Pode também — o que causa algum estranhamento — ser cometida ao acompanhante a “representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária”. É o que preceitua o artigo 145º, 2, b. Essa disposição aparentemente cria na lei portuguesa uma espécie de acompanhamento — i.e., um regime mais flexível do que a interdição/inabilitação —efetivado por meio de uma representação geral. Assim, o conteúdo do acompanhamento, nesses casos, não se distanciaria muito dos institutos já conhecidos naquele ordenamento. Nesse sentido, o art. 145º, 4 afirma que “a representação legal segue o regime da tutela, com as adaptações necessárias (…)”.
Exigência do artigo 145, 3 é a prévia e específica autorização judicial para os atos de disposição de bens imóveis. Uma importante demonstração de cuidado por parte do legislador.
No artigo 147 deduzem-se os direitos de que goza o acompanhado. Os direitos pessoais e a celebração “de negócios da vida corrente” são livres, salvo disposição legal ou decisão judicial em contrário (n. 1). Diz a lei (artigo 147, n. 2) que dentre os direitos pessoais estão o de casar ou unir-se, procriar, perfilhar ou adotar, cuidar e educar os filhos, escolher a profissão, deslocar-se no país ou no exterior, fixar domicílio e residência, estabelecer relações e testar. Ora, pelo que se afirmou nos parágrafos anteriores — e especialmente pelo teor do “novo” artigo 145 do Código Civil — parte desses atos poderá realmente estar submetida ao crivo judicial, o que mormente ocorrerá nas hipóteses em que o acompanhante atue como representante geral.
Outras disposições alteradas no Código Civil luso dizem respeito à cessação ou modificação do acompanhamento, aos deveres e direitos dos acompanhantes, conflito de interesses, prestação de contas, remoção e exoneração do acompanhante etc.
No artigo 154 encontra-se uma diretriz relevantíssima. Trata-se da sanção para os atos do acompanhado que não observem as medidas de acompanhamento. Tais atos são anuláveis: a) “quando posteriores ao registo do acompanhamento” e b) “quando praticados depois de anunciado o início do processo, mas apenas após a decisão final e caso se mostrem prejudiciais ao acompanhado”. O prazo para promover a anulação começa a correr a partir do registro da sentença (artigo 154, 2).
Dos méritos dessa lei apenas o tempo poderá dar bom testemunho. O que para já se pode dizer é que o movimento de flexibilização do regime legal das incapacidades nem sempre ocorre adequadamente.
É o que se vê no Brasil. Sabidamente o chamado Estatuto da Pessoa com Deficiência trouxe mais problemas do que soluções efetivas. Com uma impostação retórica poucas vezes vista na legislação nacional, o EPD reveste-se de um tom solidarista que em nada garante efetivos direitos às pessoas com deficiência. Afinal de contas, “a incapacidade absoluta não é instituto discriminatório, mas medida de proteção aos interesses do incapaz”[2].
Evidente que o EPD tem diversos aspectos dignos de um estudo mais aprofundado. É o caso da chamada Tomada de Decisão Apoiada (TDA).
De acordo com o artigo 1.783-A do CC/02, estabelecido pelo EPD, a TDA é “o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos duas pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade”.
Na TDA, diferentemente da nova legislação portuguesa, afirma-se claramente que a escolha dos apoiadores é feita exclusivamente pelo próprio beneficiário, muito embora setores da doutrina brasileira discordem dessa leitura, entendendo que os legitimados para propor o processo de curatela também têm legitimidade para pedir a decisão apoiada[3]. Seja como for, no caso do maior acompanhado essa legitimidade ampliada é explícita.
Outra diferença está no número de apoiadores. No Brasil exigem-se pelo menos duas pessoas, enquanto em Portugal será ao menos um, podendo excepcionalmente ser designados “vários acompanhantes com diferentes funções, especificando-se as atribuições de cada um”, segundo o artigo 143, 3.
Um ponto mais se destaca. Trata-se da referida possibilidade, no Direito português, de que o acompanhante exerça representação geral do acompanhado, o que não parece ser possível no Direito brasileiro. Isso porque, neste, a TDA defere-se para pessoas capazes, mas com limitação proveniente da deficiência. Processo que define curatela é, no Brasil, o único que pode estabelecer essa “representação”.
A bem dizer, o curador passou a exercer um poder de assistência[4], uma vez que não existe mais (exceto para os menores de 16 anos) a incapacidade absoluta. De todo modo, curatela e TDA são institutos diferentes. E como bem sugere o Enunciado 640 da VIII Jornada de Direito Civil, “A tomada de decisão apoiada não é cabível se a condição da pessoa exigir aplicação da curatela”.
Apesar dessas diferenças, vê-se a proximidade em relação ao instituto do maior acompanhado. Em ambos os ordenamentos há a preocupação de dar às pessoas com deficiência uma ampla possibilidade de exercício dos direitos, embora com um suporte, limitado e flexível. Em ambos remanesce um tom rarefeito, signo da tentativa de extinguir a interdição, mas incapaz de afastar por completo as suas tradicionais projeções (como a representação).
E ambas as legislações parecem ter como congênere o instituto italiano da amministrazione di sostegno (administração de apoio), uma novidade inserida no Código Civil e no Código de Processo Civil italianos pela Lei 06/2004. Também na França encontram-se institutos que se aproximam daquela tendência de flexibilização do sistema de incapacidades, como a sauvegard de justice, instituída por lei de 3 de janeiro de 1968, e que não retira do indivíduo a capacidade para a prática dos atos da vida civil, apenas facilitando a anulação ou a redução desses atos sempre que corresponderem a uma efetiva lesão ou forem praticados em falta ou atenuação de consciência. Na Alemanha, com a Lei da Assistência (Betreuungsgesetz), de 1990, estabeleceu-se o acompanhamento, algo próximo dessa tendência flexibilizadora.
Em todos esses países verifica-se um grande cuidado no modo de legislar, especialmente no sentido de evitar choques entre diplomas normativos.
No Brasil, a TDA foi inserida apenas no Código Civil. O CPC/2015 — promulgado antes do EPD — não trata do instituto, preservando um capítulo para o processo de interdição. Esse descompasso entre as duas leis (Código Civil e CPC) é um dos pontos que se busca sanar com o PLS 757/2015, cujo Substitutivo acaba de ser aprovado no Senado Federal.
O conflito entre CPC/15 e CC/02 (problema que vai muito além da TDA, pois, como se sabe, o CPC revogou dispositivos do CC/02 que haviam sido modificados pelo EPD) é um dos grandes erros legislativos dos últimos anos. Algo inaceitável em um país civilizado. As correções implementadas pelo PLS 757/15, custosas embora — como sói ocorrer — são necessárias.
Espera-se que, na ordem portuguesa, a Lei do Maior Acompanhado encontre a aplicabilidade que certamente no Brasil o EPD não logrou alcançar. Também isso será uma demonstração da capacidade dos portugueses de engendrar uma legislação que seja realmente protetiva, e não meramente retórica.
Na próxima coluna far-se-á uma comparação mais precisa entre os institutos “de apoio” à pessoa com deficiência nas legislações do Brasil, de Portugal e de alguns outros países.
Até lá!
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).
[1] Cf. MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de Direito Civil português. Coimbra: Almedina, 2007. p. 461-462. t. I.
[2] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa. Art. 1.783-A. in Código Civil comentado. 12.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 2349.
[3] FARIAS, Cristiano Chaves de; CUNHA, Rogério S.; PINTO, Ronaldo B.. Estatuto da Pessoa com Deficiência comentado. 3.ed. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 360-361.
[4] Assim KÜMPEL, Vitor F. e FERRARI, Carla M. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK, 2017. v. 2. p. 96.