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Da nova lei proibindo vínculo de emprego entre Igreja e religioso

Por Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

“Sancionada lei que proíbe vínculo de emprego entre igreja e religioso” [1] é uma das notícias mais recente do mundo jurídico [2].

A pergunta que fica é: sendo o Brasil um Estado laico, a referida lei está em consonância com nosso ordenamento jurídico? É o que se pretende analisar no presente artigo por meio de uma metodologia exploratória e descritiva.

Da relação política entre Estado e religião no Brasil
A Constituição brasileira de 1824 trazia a religião católica como religião oficial. Entretanto, no ano de 1890 veio o decreto 119-A, que passou a prever ser o Brasil um Estado laico, o que foi mantido pela Constituição de 1891, permanecendo a referia situação até os dias atuais [3]

Entretanto, apesar de laico, a influência política da religião católica no Brasil ainda é muito forte até os dias atuais, o que pode ser verificado pelos inúmeros feriados religiosos fazendo referência especificamente à Igreja Católica e deixando de lado as outras religiões presentes no território brasileiro, inclusive religiões tipicamente brasileiras, como a umbanda e o santo daime.

Além da religião católica, no Brasil boa parte da população adota a religião evangélica na atualidade. O crescimento da religião evangélica no Brasil acaba gerando efeitos políticos, existindo até mesmo na Câmara uma bancada de deputados autointitulada de Bancada Evangélica [4], sendo atualmente a segunda maior bancada do Congresso Nacional brasileiro [5].

A presença de grupos evangélicos no Brasil ganhou força logo após o fim da ditadura militar na década de 80, com os evangélicos pentecostais enxergando na política um mecanismo para fulminar projetos de leis contrários aos seus preceitos, o que fez a igreja Assembleia de Deus lançar boatos sobre aprovação de temas polêmicos como casamento entre pessoas do mesmo sexo, liberalização das drogas e a possibilidade da realização de aborto [6]. A Igreja Universal do Reino de Deus, por outro lado, procurou lançar candidaturas políticas de membros da igreja, estimulando os fiéis a votarem neles, inclusive organizando o alistamento dos fiéis que já tinham completado 16 anos [7].

Entretanto, apesar da bancada evangélica ser numerosa a ponto de muitas vezes atrapalhar a aprovação de projetos que não estão de acordo com os seus preceitos religiosos, não se tornou comum de imediato o chamado “voto evangélico” com a aprovação de projetos relevantes, o que é uma decorrência da existência de diversos segmentos evangélicos no Brasil, o que prejudica uma unidade [8], existindo até mesmo segmentos, como é o caso da Igreja Contemporânea Cristã, que apoia a homossexualidade [9].

Ainda assim, a influência política da referida bancada é extremamente grande a ponto de Marcos Feliciano, pastor da Assembleia de Deus, ter chegado a presidir a Comissão Parlamentar de Direitos Humanos

Frise-se que a referida realidade não se resume ao legislativo federal. Marcelo Natividade, analisando a situação da Baixada Fluminense, traz o descontentamento de movimentos sociais com o fato de alguns políticos vinculados a instituições religiosas dificultarem a aprovação de projetos de âmbito local favoráveis ao grupo LGBTQIAP+ [10].

Ademais, existe uma influência política também da religião evangélica no executivo brasileiro, a ponto do ex-presidente da República do Brasil ter nomeado um ministro para o Supremo Tribunal Federal-STF “terrivelmente evangélico” [9].

No mais, a influência em testilha começa a existir desde o período eleitoral. A título de exemplo, nas eleições presidenciais de 2010 grupos religiosos espalharam fake news de que a candidata Dilma Rousseff seria lésbica com o intuito de a desqualificar perante evangélicos e católicos [10].

Outrossim, importante lembrar a existência de religiões originalmente brasileiras, como é caso da umbanda, considerada por muitos a pioneira no Brasil e que, conforme afirma Lísias Nogueira Negrão, doutora em Sociologia pela USP e professora titular da mesma universidade, adota matrizes da macumba, do candomblé, do catolicismo e do kardecismo [11]. Entretanto, a porcentagem de pessoas adeptas da referida religião é muito pequena. Existe ainda o Santo Daime, que é uma manifestação religiosa surgida no início do século 20 na Amazônia e que tem como base o uso da ayahuasca [12], mas que não existem dados estáticos prevendo quantos adeptos ela possui no Brasil, o mesmo acontecendo com a jurema, religião comum no nordeste brasileiro e que para alguns foi criada antes mesmo da umbanda, tendo em vista ser uma religião dos primeiros brasileiros: os indígenas [13].

Ademais, a influência da religião na política brasileira não acontece apenas na ala mais conservadora da sociedade. A título de exemplo, entre os anos 1960 e 1970 alguns bairros de São Paulo tinham sua organização política mediada ao mesmo tempo por sindicatos e pastorais da Igreja Católica ligadas à Teologia da Libertação, que é uma ala católica mais progressista, sendo o referido trabalho realizado com base em discursos coletivos e de classe, o que colaborou com a criação do Partido dos Trabalhadores; diferentemente do Rio, onde a luta da classe trabalhadora era menos intensa e a Igreja Católica tinha lideranças não adeptas à Teologia da Libertação, o que se alinhava mais aos políticos com características mais personalistas [14]. Assim, existe no Brasil influência da religião tanto em políticos de esquerda como em políticos de Direita.

Diante de todo o exposto, não há como negar que, apesar de ser um país laico, o Brasil ainda possui uma forte influência religiosa na política, principalmente das religiões católicas e evangélicas e foi justamente dessa influência que surgiu a lei 14.647/23, que visa “estabelecer a inexistência de vínculo empregatício entre entidades religiosas ou instituições de ensino vocacional e seus ministros, membros ou quaisquer outros que a eles se equiparem” e cuja constitucionalidade será analisada no próximo tópico.

Da análise da constitucionalidade da Lei 14.647/23
Antes de analisar a Constituição, urge a necessidade de trazer o conceito de empregador da CLT, que é o seguinte: “Artigo 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”.

Diante do referido dispositivo legal, a doutrina laboral traz os seguintes requisitos para alguém ser considerado empregado: trabalho por pessoa física, pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação [15].

Desse modo, preenchidos todos esses elementos previstos no parágrafo anterior, haveria uma relação de emprego; não preenchidos, não haveria o que se falar em uma relação empregatícia, o que, no nosso entendimento, deveria valer inclusive para os ministros de confissão religiosa.

Entretanto, antes mesmo da publicação da lei 14.467/23, o Tribunal Superior do Trabalho já vinha entendendo que a atividade do ministro de confissão religiosa não se caracteriza uma relação de emprego por não se encontrarem presentes todos os elementos do artigo 3º da CLT, em especial a subordinação jurídica. Nesse sentido:

“Adianto que, em meu sentir, em se tratando de pastor evangélico ou qualquer outro ministro de confissão religiosa, o ordinário, isto é, aquilo que normalmente ocorre, é a ausência total de subordinação jurídica nos moldes celetistas, sendo este vínculo de natureza estritamente vocacional, religiosa, espiritual, de modo que a questão alusiva ao ônus da prova ganha novos contornos, passando a ser da parte autora a incumbência de provar a existência de fatos que desnaturem esse vínculo” [16].

Além disso, também há decisões do TST entendendo inexistir a onerosidade nesses casos, nos seguintes termos:

“Isso porque o fato de o autor receber determinada importância mensal não implica o reconhecimento de que havia uma contraprestação pelos serviços, mas sim uma forma de prover o seu sustento e dar condições de bem exercer a missão que lhe foi confiada, de modo que não caracterizada a onerosidade” [17].

Desse modo, a Lei 14.647/23 parece se alinhar ao entendimento do TST quando altera a CLT para prever o seguinte:

“Artigo 442: (…)

§ 2º. Não existe vínculo empregatício entre entidades religiosas de qualquer denominação ou natureza ou instituições de ensino vocacional e ministros de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, ou quaisquer outros que a eles se equiparem, ainda que se dediquem parcial ou integralmente a atividades ligadas à administração da entidade ou instituição a que estejam vinculados ou estejam em formação ou treinamento. (Incluído pela Lei nº 14.647, de 2023)

§ 3º. O disposto no § 2º não se aplica em caso de desvirtuamento da finalidade religiosa e voluntária. (Incluído pela Lei nº 14.647, de 2023)“.

Entretanto, no nosso entendimento a Lei 14.647/23 foi mais além do que estava sendo decidido pelo TST, pois a Corte Laboral vinha analisando em cada caso concreto a presença ou não dos elementos caracterizadores da relação de emprego, como a subordinação e onerosidade, enquanto que a lei nova acaba por estabelecer que não haverá vínculo empregatício entre entidades religiosas de qualquer denominação ou natureza ou instituições de ensino vocacional e ministros de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, ou quaisquer outros que a eles se equiparem ainda que estejam previstos todos os elementos caracterizadores da relação de emprego.

Desse modo, a lei em testilha acaba, com base em questões religiosas, dando um tratamento diferenciado para pessoas que efetivamente trabalham em entidades religiosas, o que fere o princípio da igualdade previsto no “caput” do 5º artigo da Constituição; além do disposto no artigo 7º da Constituição, que aborda o direito dos trabalhadores urbanos e rurais e, por fim, é um desrespeito ao fato do Brasil ser um Estado Laico.

Conclusões
Não há como negar a existência de pessoas que trabalham em entidades religiosas e que não possuem qualquer vínculo de emprego e que o fazem única e exclusivamente movidos pela sua fé e pelos preceitos que regem as suas religiões. Entretanto, entendemos que cada situação deveria ser analisada caso por caso para que se verificasse se estão presentes ou não o trabalho realizado por pessoa física, a pessoalidade, a não eventualidade, a onerosidade e a subordinação.

Alguns afirmam que Lei 14.647/23 veio para trazer mais segurança jurídica para entidades religiosas e para os próprios religiosos, o que não deixa de ser uma verdade, porém nos parece que ela acaba por excluir uma categoria de pessoas da possibilidade de comprovarem seu vínculo empregatício ainda que previstos os requisitos previstos no artigo 3º da CLT e assim o faz consubstanciada em questões religiosas dentro de um Estado Laico.

Desse modo, entendemos que a Lei 14.647/23 é inconstitucional, pois decidir se existe ou não vínculo empregatício entre uma pessoa e uma entidade religiosa é algo que deveria vir a ser analisado em cada caso concreto e não aprioristicamente por meio de uma lei.

 

Referências

AGOSTINHO, Luís Otávio Vicenzi de. “Análise Constitucional acerca da crise entre estado liberdade de crença e estado laico”. Revista do programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Fundinopi, número 9, 2008. [p.133-146].

DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: ideologia e ação da bancada evangélica Câmara Federal. Tese apresentada no Doutorado em Psicologia Social da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, 2014. p.23. SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos Direitos Humanos. 2ªed. São Paulo: Cortez, 2014.

GODINHO, Maurício. Curso de direito do trabalho.18. ed. São Paulo : LTr, 2019.

MANSO, Bruno Paes. A República das milícias: dos equadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2021

NATIVIDADE, Marcelo. Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro: Garamond, 2016.

NEGRÃO, Lísias Nogueira. Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada. Tempo Social;

Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5(1-2): 113-122, 1993(editado em nov. 1994).

ORO, Ari Pedro. A política da Igreja Universal e seus reflexos nos campos religiosos e políticos brasileiros. Revista Brasileira de Ciências Sociais-RBCS. v. 18 nº. 53 outubro/2003.

RODRIGUES, Michelle Gonçalves. Da invisibilidade à visibilidade da Jurema: a religião como potencialidade política. Tese de Doutorado em Antropologia. UFPE, 2014.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos Direitos Humanos. 2ªed. São Paulo: Cortez, 2014.

 

[1] AGOSTINHO, Luís Otávio Vicenzi de. “Análise Constitucional acerca da crise entre estado liberdade de crença e estado laico”. Revista do programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Fundinopi, número 9, 2008. [p.133-146].p.138.

[2] DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: ideologia e ação da bancada evangélica Câmara Federal. Tese apresentada no Doutorado em Psicologia Social da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, 2014. p.23.

[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos Direitos Humanos. 2ªed. São Paulo: Cortez, 2014. p.76.

[4] DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: ideologia e ação da bancada evangélica Câmara Federal. Tese apresentada no Doutorado em Psicologia Social da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, 2014. p.24.

[5] ORO, Ari Pedro. A política da Igreja Universal e seus reflexos nos campos religiosos e políticos brasileiros. Revista Brasileira de Ciências Sociais-RBCS. v. 18 nº. 53 outubro/2003.p.55.

[6] DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: ideologia e ação da bancada evangélica Câmara Federal. Tese apresentada no Doutorado em Psicologia Social da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, 2014. p.47.

[7] NATIVIDADE, Marcelo. Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro: Garamond, 2016. p.47.

[8] NATIVIDADE, Marcelo. Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro: Garamond, 2016. p.45.

[9] Sobre esse tema, escrevemos também pelo Conjur o seguinte artigo: https://www.conjur.com.br/2021-ago-28/ricardo-russel-escolha-ministro-stf

[10]NATIVIDADE, Marcelo. Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro: Garamond, 2016. p

[11] NEGRÃO, Lísias Nogueira. Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5(1-2): 113-122, 1993(editado em nov. 1994).p.113.

[12] Fonte: https://www.infoescola.com/religiao/santo-daime/ Acesso em: 14 jan. 2021.

[13] RODRIGUES, Michelle Gonçalves. Da invisibilidade à visibilidade da Jurema: a religião como potencialidade política. Tese de Doutorado em Antropologia. UFPE, 2014. p.134.

[14] MANSO, Bruno Paes. A República das milícias: dos equadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2021

[15] GODINHO, Maurício. Curso de direito do trabalho.18. ed. São Paulo : LTr, 2019. p.337.

[16] Decisão disponível em: https://jurisprudencia-backend2.tst.jus.br/rest/documentos/94302888e91e47d155afda93ca71010d

[17] Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/349800/tst-e-o-vinculo-empregaticio-entre-pastor-e-igreja

Por Ricardo Russell Brandão Cavalcanti

“Sancionada lei que proíbe vínculo de emprego entre igreja e religioso” [1] é uma das notícias mais recente do mundo jurídico [2].

A pergunta que fica é: sendo o Brasil um Estado laico, a referida lei está em consonância com nosso ordenamento jurídico? É o que se pretende analisar no presente artigo por meio de uma metodologia exploratória e descritiva.

Da relação política entre Estado e religião no Brasil
A Constituição brasileira de 1824 trazia a religião católica como religião oficial. Entretanto, no ano de 1890 veio o decreto 119-A, que passou a prever ser o Brasil um Estado laico, o que foi mantido pela Constituição de 1891, permanecendo a referia situação até os dias atuais [3]

Entretanto, apesar de laico, a influência política da religião católica no Brasil ainda é muito forte até os dias atuais, o que pode ser verificado pelos inúmeros feriados religiosos fazendo referência especificamente à Igreja Católica e deixando de lado as outras religiões presentes no território brasileiro, inclusive religiões tipicamente brasileiras, como a umbanda e o santo daime.

Além da religião católica, no Brasil boa parte da população adota a religião evangélica na atualidade. O crescimento da religião evangélica no Brasil acaba gerando efeitos políticos, existindo até mesmo na Câmara uma bancada de deputados autointitulada de Bancada Evangélica [4], sendo atualmente a segunda maior bancada do Congresso Nacional brasileiro [5].

A presença de grupos evangélicos no Brasil ganhou força logo após o fim da ditadura militar na década de 80, com os evangélicos pentecostais enxergando na política um mecanismo para fulminar projetos de leis contrários aos seus preceitos, o que fez a igreja Assembleia de Deus lançar boatos sobre aprovação de temas polêmicos como casamento entre pessoas do mesmo sexo, liberalização das drogas e a possibilidade da realização de aborto [6]. A Igreja Universal do Reino de Deus, por outro lado, procurou lançar candidaturas políticas de membros da igreja, estimulando os fiéis a votarem neles, inclusive organizando o alistamento dos fiéis que já tinham completado 16 anos [7].

Entretanto, apesar da bancada evangélica ser numerosa a ponto de muitas vezes atrapalhar a aprovação de projetos que não estão de acordo com os seus preceitos religiosos, não se tornou comum de imediato o chamado “voto evangélico” com a aprovação de projetos relevantes, o que é uma decorrência da existência de diversos segmentos evangélicos no Brasil, o que prejudica uma unidade [8], existindo até mesmo segmentos, como é o caso da Igreja Contemporânea Cristã, que apoia a homossexualidade [9].

Ainda assim, a influência política da referida bancada é extremamente grande a ponto de Marcos Feliciano, pastor da Assembleia de Deus, ter chegado a presidir a Comissão Parlamentar de Direitos Humanos

Frise-se que a referida realidade não se resume ao legislativo federal. Marcelo Natividade, analisando a situação da Baixada Fluminense, traz o descontentamento de movimentos sociais com o fato de alguns políticos vinculados a instituições religiosas dificultarem a aprovação de projetos de âmbito local favoráveis ao grupo LGBTQIAP+ [10].

Ademais, existe uma influência política também da religião evangélica no executivo brasileiro, a ponto do ex-presidente da República do Brasil ter nomeado um ministro para o Supremo Tribunal Federal-STF “terrivelmente evangélico” [9].

No mais, a influência em testilha começa a existir desde o período eleitoral. A título de exemplo, nas eleições presidenciais de 2010 grupos religiosos espalharam fake news de que a candidata Dilma Rousseff seria lésbica com o intuito de a desqualificar perante evangélicos e católicos [10].

Outrossim, importante lembrar a existência de religiões originalmente brasileiras, como é caso da umbanda, considerada por muitos a pioneira no Brasil e que, conforme afirma Lísias Nogueira Negrão, doutora em Sociologia pela USP e professora titular da mesma universidade, adota matrizes da macumba, do candomblé, do catolicismo e do kardecismo [11]. Entretanto, a porcentagem de pessoas adeptas da referida religião é muito pequena. Existe ainda o Santo Daime, que é uma manifestação religiosa surgida no início do século 20 na Amazônia e que tem como base o uso da ayahuasca [12], mas que não existem dados estáticos prevendo quantos adeptos ela possui no Brasil, o mesmo acontecendo com a jurema, religião comum no nordeste brasileiro e que para alguns foi criada antes mesmo da umbanda, tendo em vista ser uma religião dos primeiros brasileiros: os indígenas [13].

Ademais, a influência da religião na política brasileira não acontece apenas na ala mais conservadora da sociedade. A título de exemplo, entre os anos 1960 e 1970 alguns bairros de São Paulo tinham sua organização política mediada ao mesmo tempo por sindicatos e pastorais da Igreja Católica ligadas à Teologia da Libertação, que é uma ala católica mais progressista, sendo o referido trabalho realizado com base em discursos coletivos e de classe, o que colaborou com a criação do Partido dos Trabalhadores; diferentemente do Rio, onde a luta da classe trabalhadora era menos intensa e a Igreja Católica tinha lideranças não adeptas à Teologia da Libertação, o que se alinhava mais aos políticos com características mais personalistas [14]. Assim, existe no Brasil influência da religião tanto em políticos de esquerda como em políticos de Direita.

Diante de todo o exposto, não há como negar que, apesar de ser um país laico, o Brasil ainda possui uma forte influência religiosa na política, principalmente das religiões católicas e evangélicas e foi justamente dessa influência que surgiu a lei 14.647/23, que visa “estabelecer a inexistência de vínculo empregatício entre entidades religiosas ou instituições de ensino vocacional e seus ministros, membros ou quaisquer outros que a eles se equiparem” e cuja constitucionalidade será analisada no próximo tópico.

Da análise da constitucionalidade da Lei 14.647/23
Antes de analisar a Constituição, urge a necessidade de trazer o conceito de empregador da CLT, que é o seguinte: “Artigo 3º – Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”.

Diante do referido dispositivo legal, a doutrina laboral traz os seguintes requisitos para alguém ser considerado empregado: trabalho por pessoa física, pessoalidade, não eventualidade, onerosidade e subordinação [15].

Desse modo, preenchidos todos esses elementos previstos no parágrafo anterior, haveria uma relação de emprego; não preenchidos, não haveria o que se falar em uma relação empregatícia, o que, no nosso entendimento, deveria valer inclusive para os ministros de confissão religiosa.

Entretanto, antes mesmo da publicação da lei 14.467/23, o Tribunal Superior do Trabalho já vinha entendendo que a atividade do ministro de confissão religiosa não se caracteriza uma relação de emprego por não se encontrarem presentes todos os elementos do artigo 3º da CLT, em especial a subordinação jurídica. Nesse sentido:

“Adianto que, em meu sentir, em se tratando de pastor evangélico ou qualquer outro ministro de confissão religiosa, o ordinário, isto é, aquilo que normalmente ocorre, é a ausência total de subordinação jurídica nos moldes celetistas, sendo este vínculo de natureza estritamente vocacional, religiosa, espiritual, de modo que a questão alusiva ao ônus da prova ganha novos contornos, passando a ser da parte autora a incumbência de provar a existência de fatos que desnaturem esse vínculo” [16].

Além disso, também há decisões do TST entendendo inexistir a onerosidade nesses casos, nos seguintes termos:

“Isso porque o fato de o autor receber determinada importância mensal não implica o reconhecimento de que havia uma contraprestação pelos serviços, mas sim uma forma de prover o seu sustento e dar condições de bem exercer a missão que lhe foi confiada, de modo que não caracterizada a onerosidade” [17].

Desse modo, a Lei 14.647/23 parece se alinhar ao entendimento do TST quando altera a CLT para prever o seguinte:

“Artigo 442: (…)

§ 2º. Não existe vínculo empregatício entre entidades religiosas de qualquer denominação ou natureza ou instituições de ensino vocacional e ministros de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, ou quaisquer outros que a eles se equiparem, ainda que se dediquem parcial ou integralmente a atividades ligadas à administração da entidade ou instituição a que estejam vinculados ou estejam em formação ou treinamento. (Incluído pela Lei nº 14.647, de 2023)

§ 3º. O disposto no § 2º não se aplica em caso de desvirtuamento da finalidade religiosa e voluntária. (Incluído pela Lei nº 14.647, de 2023)“.

Entretanto, no nosso entendimento a Lei 14.647/23 foi mais além do que estava sendo decidido pelo TST, pois a Corte Laboral vinha analisando em cada caso concreto a presença ou não dos elementos caracterizadores da relação de emprego, como a subordinação e onerosidade, enquanto que a lei nova acaba por estabelecer que não haverá vínculo empregatício entre entidades religiosas de qualquer denominação ou natureza ou instituições de ensino vocacional e ministros de confissão religiosa, membros de instituto de vida consagrada, de congregação ou de ordem religiosa, ou quaisquer outros que a eles se equiparem ainda que estejam previstos todos os elementos caracterizadores da relação de emprego.

Desse modo, a lei em testilha acaba, com base em questões religiosas, dando um tratamento diferenciado para pessoas que efetivamente trabalham em entidades religiosas, o que fere o princípio da igualdade previsto no “caput” do 5º artigo da Constituição; além do disposto no artigo 7º da Constituição, que aborda o direito dos trabalhadores urbanos e rurais e, por fim, é um desrespeito ao fato do Brasil ser um Estado Laico.

Conclusões
Não há como negar a existência de pessoas que trabalham em entidades religiosas e que não possuem qualquer vínculo de emprego e que o fazem única e exclusivamente movidos pela sua fé e pelos preceitos que regem as suas religiões. Entretanto, entendemos que cada situação deveria ser analisada caso por caso para que se verificasse se estão presentes ou não o trabalho realizado por pessoa física, a pessoalidade, a não eventualidade, a onerosidade e a subordinação.

Alguns afirmam que Lei 14.647/23 veio para trazer mais segurança jurídica para entidades religiosas e para os próprios religiosos, o que não deixa de ser uma verdade, porém nos parece que ela acaba por excluir uma categoria de pessoas da possibilidade de comprovarem seu vínculo empregatício ainda que previstos os requisitos previstos no artigo 3º da CLT e assim o faz consubstanciada em questões religiosas dentro de um Estado Laico.

Desse modo, entendemos que a Lei 14.647/23 é inconstitucional, pois decidir se existe ou não vínculo empregatício entre uma pessoa e uma entidade religiosa é algo que deveria vir a ser analisado em cada caso concreto e não aprioristicamente por meio de uma lei.

 

Referências

AGOSTINHO, Luís Otávio Vicenzi de. “Análise Constitucional acerca da crise entre estado liberdade de crença e estado laico”. Revista do programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Fundinopi, número 9, 2008. [p.133-146].

DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: ideologia e ação da bancada evangélica Câmara Federal. Tese apresentada no Doutorado em Psicologia Social da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, 2014. p.23. SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos Direitos Humanos. 2ªed. São Paulo: Cortez, 2014.

GODINHO, Maurício. Curso de direito do trabalho.18. ed. São Paulo : LTr, 2019.

MANSO, Bruno Paes. A República das milícias: dos equadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2021

NATIVIDADE, Marcelo. Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro: Garamond, 2016.

NEGRÃO, Lísias Nogueira. Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada. Tempo Social;

Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5(1-2): 113-122, 1993(editado em nov. 1994).

ORO, Ari Pedro. A política da Igreja Universal e seus reflexos nos campos religiosos e políticos brasileiros. Revista Brasileira de Ciências Sociais-RBCS. v. 18 nº. 53 outubro/2003.

RODRIGUES, Michelle Gonçalves. Da invisibilidade à visibilidade da Jurema: a religião como potencialidade política. Tese de Doutorado em Antropologia. UFPE, 2014.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos Direitos Humanos. 2ªed. São Paulo: Cortez, 2014.

 

[1] AGOSTINHO, Luís Otávio Vicenzi de. “Análise Constitucional acerca da crise entre estado liberdade de crença e estado laico”. Revista do programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Fundinopi, número 9, 2008. [p.133-146].p.138.

[2] DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: ideologia e ação da bancada evangélica Câmara Federal. Tese apresentada no Doutorado em Psicologia Social da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, 2014. p.23.

[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista dos Direitos Humanos. 2ªed. São Paulo: Cortez, 2014. p.76.

[4] DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: ideologia e ação da bancada evangélica Câmara Federal. Tese apresentada no Doutorado em Psicologia Social da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, 2014. p.24.

[5] ORO, Ari Pedro. A política da Igreja Universal e seus reflexos nos campos religiosos e políticos brasileiros. Revista Brasileira de Ciências Sociais-RBCS. v. 18 nº. 53 outubro/2003.p.55.

[6] DANTAS, Bruna Suruagy do Amaral. Religião e Política: ideologia e ação da bancada evangélica Câmara Federal. Tese apresentada no Doutorado em Psicologia Social da Pontifica Universidade Católica de São Paulo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo-PUC/SP, 2014. p.47.

[7] NATIVIDADE, Marcelo. Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro: Garamond, 2016. p.47.

[8] NATIVIDADE, Marcelo. Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro: Garamond, 2016. p.45.

[9] Sobre esse tema, escrevemos também pelo Conjur o seguinte artigo: https://www.conjur.com.br/2021-ago-28/ricardo-russel-escolha-ministro-stf

[10]NATIVIDADE, Marcelo. Margens da Política: Estado, Direitos Sexuais e Religiões. Rio de Janeiro: Garamond, 2016. p

[11] NEGRÃO, Lísias Nogueira. Umbanda: entre a cruz e a encruzilhada. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 5(1-2): 113-122, 1993(editado em nov. 1994).p.113.

[12] Fonte: https://www.infoescola.com/religiao/santo-daime/ Acesso em: 14 jan. 2021.

[13] RODRIGUES, Michelle Gonçalves. Da invisibilidade à visibilidade da Jurema: a religião como potencialidade política. Tese de Doutorado em Antropologia. UFPE, 2014. p.134.

[14] MANSO, Bruno Paes. A República das milícias: dos equadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2021

[15] GODINHO, Maurício. Curso de direito do trabalho.18. ed. São Paulo : LTr, 2019. p.337.

[16] Decisão disponível em: https://jurisprudencia-backend2.tst.jus.br/rest/documentos/94302888e91e47d155afda93ca71010d

[17] Fonte: https://www.migalhas.com.br/depeso/349800/tst-e-o-vinculo-empregaticio-entre-pastor-e-igreja

#FOCONAFOTO: https://www.conjur.com.br/2023-ago-16/ricardo-russell-vinculo-emprego-entre-igreja-religioso

Sobre o autor

A oposição é necessária para avaliar a gestão, mas é importante distinguir entre oposição legítima e politicagem, que busca causar problemas e confundir a população. É preciso ficar atento para não cair nesse jogo manipulador.

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