Direto de Brasília-DF.
Estava pedalando pelo Eixão de Brasília, domingo passado. Innocêncio Viegas é escritor maranhense radicado em Brasília, desde 1984. É autor do livro “Contos, Cantos e Encantos”e também daqueles cronistas que dá prazer ler.
Hoje o homenageio e te presenteio com duas de suas crônicas, para começar bem o dia.
“O último dia da primavera”
por Innocêncio Viégas
Hoje, vinte de dezembro de dois mil e vinte, último dia da primavera no Hemisfério
Norte, o sol radiante de todos os dias não apareceu no horizonte entre as montanhas de
Sobradinho – DF. O céu estava pleno de nuvens plúmbeas e o vento frio nos tirava o ânimo
para varrer as folhas secas do pomar.
Uma chuva fina caía sobre as árvores, sobre a grama do pátio e sobre as flores do
jardim da Bel, lavando as mangas que pendiam dos galhos da frondosa mangueira que enfeita
nosso quintal. O sabiá madrugador, que nos encanta com seu mavioso canto, estava mudo,
quem sabe, já saudoso dos floridos dias da primavera. O terreno gramado em redor do Rancho
se deixava encharcar como a querer fazer reserva para os dias secos do verão que vem
chegando.
Abri a grande porta de vidro do nosso quarto que dá para o jardim e fiquei admirando
a chuva, a beleza das flores e o verde lindo do gramado. Logo vi uma corredeira formada pela
água que descia do telhado pela calha, formando um límpido riozinho, beirando a calçada do
nosso quarto.
Lembrei-me do poeta português Fernando Pessoa, que cantou em versos o rio que
passa em sua aldeia. Disse o poeta que o rio Tejo não é mais bonito que o rio que passa em
sua aldeia e concluiu: “porque o Tejo, não é o rio que passa em minha Aldeia”.
Igual a Pessoa, também temos um rio que corre em nosso gramado sempre que chove,
e não o trocaríamos por nenhum dos grandes rios que nas cheias atormentam os ribeirinhos.
Fui buscar uma folha de papel, dobrei, dobrei, e me vi menino fazendo um barquinho
de papel de embrulho. O barquinho ficou pronto, não tão perfeito quanto os que eu fazia em
priscas eras. Coloquei suavemente sobre a água do rio, o meu barquinho que logo seguiu seu
destino encalhou no primeiro galho seco caído de uma roseira. Fui lá, mesmo na chuva e o
livrei do obstáculo. Ele seguiu o seu caminho, sem leme, sem um barqueiro, sem amarras e
solto no mundo.
Meu barquinho, porém, não navegava só, dentro dele estava o meu pensamento, com
toda energia dos primeiros dias. Ele levava ali, em seu interior, a esperança dos tempos idos,
dos meus desejos de menino que não os realizei.
Continuo olhando o riacho que, em seu curso, vai levando pequeninas folhas secas,
gravetos e as peraltices da minha infância, à beira do Rio Bacanga, na praia da Madre Deus,
em minha saudosa São Luís do Maranhão.
A chuva fina insistia e o pequenino rio corria para qualquer mar, mesmo os mais
distantes de Brasília.
Fechei a porta e fui me despedir da primavera e me preparar para a chegada do verão.
Peguei uma mimosa taça de cristal e servi-me uma dose do conhaque Napoleon.
Derramei um pouquinho para “os velhos jardineiros" e sorvi, em pequenos goles, o espírito da
vida. Com ânimo renovado, fui então almoçar.
O barquinho singrava tranquilamente contornando todos os obstáculos, ia levando
consigo as lembranças da minha meninice e o último dia da primavera.
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“O inebriante perfume do Livro”
Por Innocêncio Viégas
No momento discutimos o fim do livro de papel, tendo em vista o modismo do
livro virtual nos mais diversos aparelhos da modernidade.
Para quem gosta de ler, que vai sempre que possível a uma livraria ou mesmo a
um sebo, que olha aquela pilha de livros, que fica a admirar a encadernação, o colorido
das capas e “orelhas” e, mais que tudo, sente o perfume que vem do livro quando aberto
perto do seu rosto, para esse leitor, o livro de papel nunca se acabará.
O cheiro do livro novo me fascina. Mas o livro usado tem para mim o mesmo
cheiro da saudade dos bons tempos.
Dia desses, nas minhas intermináveis visitas aos sebos, encontrei uma
preciosidade. Um livro de Affonso Arinos de Mello Franco, edição de 1985, com
prefácio de Alceu de Amoroso Lima e contracapa de José Sarney, ainda com cheiro da
velha Europa, do Tejo, do Douro, e dos mosteiros da vetusta Itália. O livro, meus
amigos, está manchado em algumas páginas com pingos de vinho, e essas manchas têm
o rubro da uva Isabel e o amarelo-ouro da Moscatel de Setúbal. Ele conserva até hoje
em sua alma o cheiro doce do vinho do Alentejo.
Procurei entre suas páginas uma pista do seu primeiro dono e nada achei, além
de respingos perfumados e algumas anotações a lápis, em diversas páginas,
possivelmente grifos de um velho mestre, preocupado em marcar os pontos preciosos da
boa leitura.
Continuei lendo e imaginando a pessoa lendo e sorvendo gostosamente uma taça
de um bom e perfumado vinho do Porto “Ramos Pinto” ou mesmo um “Brunello di
Montalcino”.
Parei a leitura, fui à adega, na Biblioteca, peguei uma coleção de miniaturas dos
bons vinhos do Porto que o mano Abdias trouxe de Portugal e gentilmente me ofertou.
Desisti de violar a coleção e fui direto ao robusto Dom José, um saboroso Porto, rubi.
Acordei o dorminhoco, peguei uma taça colorida da Real Companhia Velha, despejei o
precioso líquido e fiquei a admirar o aljôfar de suas borbulhas.
Fomos, eu, o livro e o vinho, para o banco de pedra que fica no santo lugar à
sombra do abacateiro, na Praça das Flores, aqui mesmo no quintal do Rancho.
O vinho foi pouco, pois estou limitado a uma simples taça, mas o livro foi um
grande companheiro por umas duas horas, até a leitura ser interrompida, já à tardinha,
pelo suave cantar do sabiá “colodiã”, que dorme no abacateiro, abacateiro que me
empresta sua sombra no final da tarde, antes que a noite venha. Ah! Ia me esquecendo
de lhes dizer o nome do livro: Amor a Roma. Este título é um palíndromo do saudoso
Pedro Nava, isto é, pode ser lido ao contrário que dá no mesmo. Amor a Roma.
Um grande livro de um grande autor. São momentos iguais a estes que me
deixam viver além das dores.
Depois de tudo isto, caros amigos, só resta gritar a todos os ventos: – Ave César!
Viva o vinho… sem esquecer o inebriante perfume do livro.
Boa noite, tenham todos bons sonhos!
Foto do livro “Contos, Cantos e Encantos”