O caso de Deltan Dallagnol é simples. Um dos líderes da “república de Curitiba” foi arrebatado por uma das mais violentas formas de indeferimento de registro de candidatura da famigerada Lei da Ficha Limpa, a alínea “q”[1].
Quis a lei que magistrados e membros do Ministério Público “que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de oito anos” estão inelegíveis. Em síntese, se já há processo administrativo disciplinar não posso pedir exoneração ou aposentadoria voluntária, sob pena de ficar inelegível e ter o registro de candidatura indeferido.
A ideia é que aquele que pede exoneração ou aposentadoria quer fugir dos efeitos de uma decisão condenatória que poderia redundar em inelegibilidade. Uma perversidade inominável presumir tanta má-fé de pessoas que julgam outras e tem o monopólio da ação penal.
São aquelas inelegibilidades constituídas sem decisão judicial ou pela interrupção de processo administrativo sancionador, em que sequer há decisão judicial, mesmo precária. Nesses casos, soma-se, à violação da presunção de inocência, o “devido processo legal convencional”, pois basta para o resultado funesto da inelegibilidade, o pedido de renúncia ou o pedido de exoneração/aposentadoria, pendente o bendito processo administrativo disciplinar.
A inelegibilidade, assim, surge de uma presunção jure et jure da renúncia ou pedido de aposentadoria ou exoneração como confissões de ilícitos, para, daí, gerar a cominação, em claro desrespeito à ampla defesa e ao contraditório que não poderão ser exercidos após esses atos unilaterais, em violação direta ao devido processo convencional e à presunção de inocência[2].
O trágico fim da inelegibilidade e indeferimento do registro do candidato Deltan exigia, deste modo, a conjugação dos três elementos nucleares da norma: i) condição de membro do Ministério Público; ii) pedido de exoneração; iii) existência de processo administrativo disciplinar.
O TSE reconheceu que não havia processo administrativo disciplinar no acórdão que indeferiu o registro de candidatura. Não houve a equiparação de sindicância a processo administrativo disciplinar, como querem alguns mais apaixonados. No caso de Deltan, não havia um só processo administrativo disciplinar. Como condenar Deltan?
Surge a ideia no acórdão da fraude[3], porque a exoneração aí ocorrera para evitar que os fatos apurados se transformassem naquele elemento nuclear exigido pela norma, ou seja, procedimento administrativo disciplinar. Essas epigêneses das infâncias dos procedimentos administrativos disciplinares só não floresceram em face da exoneração.
O acórdão pressupôs que aqueles procedimentos correicionais investigativos e preliminares fossem se tornar procedimentos correicionais acusatórios na modalidade de processo administrativo disciplinar, no exemplo do Manual de Processo Administrativo Disciplinar da Corregedoria-Geral da União[4]. Assim fazendo, Deltan fraudou uma inelegibilidade futura que ocorreria, caso não houvesse o pedido de saída do Ministério Público[5].
A ilogicidade formal do argumento repousa não apenas na inexistência de um requisito nuclear da norma (existência de procedimento administrativo disciplinar), mas no fato solene que, ao tempo do seu registro de candidatura, a existência de mera investigação era irrelevante. Ao tempo dos fatos, o seu pedido de exoneração, para os fins do registro de candidatura, era ato lícito. Nenhuma norma o impedia de exonerar-se exatamente para que não houvesse ainda um processo administrativo disciplinar e sua candidatura fosse legal.
Não se trata de fraude, mas de exercício regular do direito. Aliás, exercício regular e inteligente de um direito para impedir embaraços para sua candidatura. Wederson Advíncula, em irrespondível argumento, aduziu em grupo da Abradep (Associação Brasileira de Direito Eleitoral e Político) que faz o mesmo aquele candidato que tenta evitar a inelegibilidade e se afasta do cargo no prazo de seis meses antes do pleito. Ele se afasta do cargo exatamente para cumprir a lei e ser elegível. O cumprimento da lei pode ser considerado fraude, quando o que se busca é fugir de uma situação geradora de inelegibilidade? Evidente que não.
Deu-se aqui uma interpretação extensiva para sancionar não apenas aqueles exonerados com pendente processo administrativo disciplinar, mas para tornar inelegíveis aqueles exonerados sobre os quais haja fatos que possam se tornar processos administrativos disciplinares. Se há fato disciplinar a ser apurado que possa, no futuro incerto e provável, torna-se um processo administrativo disciplinar, nessa insana futurologia, toda exoneração pode gerar uma elegibilidade potencialmente fraudada…
Noutro extremo, Renato Ribeiro de Almeida, amigo fraterno, não vê interpretação extensiva, porque “Deltan poderia vir a ser demitido dos quadros do MPF”[6].
Aqui o poder estatal não foi deduzido do poder comunicativo dos cidadãos, como diria Jurgen Habermas, na forma de uma lei abstrata, geral impessoal e anterior à conduta. Houve simplesmente a declaração pela autoridade judicial autocrática de norma personalizada (act or bill of attainder), uma norma em forma de acórdão ex post facto — a insegurança jurídica na sua vertente mais crua da imprevisibilidade[7].
Neste caso, o fato futuro não devia mover moinhos presentes, eu diria. Já sancionamos o passado com essa famigerada lei, quando a aplicamos para aqueles condenados antes da sua promulgação e agora criamos inelegibilidade presentes por fatos futuros e prováveis… Só falta a sanção do além-túmulo para tornar a piada integral.
Há muitos anos venho apontando o desacerto da famigerada Lei da Ficha Limpa, após influência direta dos amigos Adriano Soares da Costa, Eneida Salgado e Ruy Samuel Espíndola, este mais de perto, da tribuna do TRE-SC (Tribunal Regional Eleitoral de Santa Catarina)[8]. Escrevi o primeiro livro no Brasil sobre a violação dessa lei à Convenção Americana e à jurisprudência da Corte e venho, desde então, aqui e ali, sublinhando a irracionalidade e tragédia do diploma e do seu particular zeitgeist (espírito do tempo) para a derrocada da democracia nacional ao tentar melhorá-la pela restrição moral dos direitos políticos e limitação do universo dos candidatos, na busca idealizada de candidatos angelicais inexistentes — uma impossibilidade em si[9].
É bem verdade que nos últimos tempos tem crescido o esforço nacional em favor da pauta do Direito Internacional dos Direitos Humanos no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e no site do STF (Supremo Tribunal Federal). Há até uma hoje uma recomendação aos órgãos do Poder Judiciário brasileiro de observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.[10]
Quanto aos direitos políticos, contudo, nossa absoluta falta de crença na capacidade do povo de escolher tem nos embretado em soluções jurisdicionais para melhorar a democracia pelo rompimento violento dos subsistemas do direito e da política. Temos ignorado a recomendação do CNJ de “observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil e a utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), bem como a necessidade de controle de convencionalidade das leis internas”.
O avanço do tema geral dos direitos humanos não faz verão nos direitos políticos e o artigo 23 da Convenção Americana e os hard cases da Corte Interamericana são desprezados.
Vige a ideia de um povo infantilizado e incapaz a ser constantemente tutelado e impedido de suas decisões por colegiados judiciais, não raro com soluções autocráticas, envolvidos que estamos nesse espírito de porco da famigerada Lei da Ficha Limpa[11]. No fundo, o medo do povo perpassa todo o direito eleitoral atual.
A primeira promessa falsa dessa Lei da Ficha Limpa foi o seu propósito evangelizador para as boas práticas republicanas[12], o “espírito da lei na alma do povo”, a proclamada “bandeira da moralização da política” nas palavras do ex-senador Demóstenes Torres, para extirpar aqueles que “não possuem conduta adequada à dignidade das relevantes funções públicas”. Nessa religiosa barafunda uniram-se OAB, CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e um Parlamento amedrontado em ser contra tão importante ideário.
Olvidamos — eu também embarquei nessa toada evangelizadora — que a moralidade é má conselheira do direito eleitoral e da democracia. A história tem demonstrado que a moralidade, quando incidente sobre o direto eleitoral, tem servido ao longo do tempo para perseguir opositores e deformar a cidadania. Os eleitos têm outros filtros como a decisão dos partidos e o voto. Quando se cassa e se “caça” uma candidatura (e aqui a correção da expressão “indeferimento do registro” escamoteia a violência política), quase nunca se lembra, está se negando validade a milhares de votos. Quando se afirma a inelegibilidade, está se proibindo que o povo escolha determinado candidato ou que seu escolhido exerça a função pública. Sanção maior à cidadania em uma democracia é difícil apontar. Por isso mesmo são econômicas as inelegibilidades na Europa, o disfranchising nos Estados Unidos [13] e na América Latina, enfim, nas democracias ocidentais, cada vez mais raras.
Adriano Soares da Costa tratou da necessidade de refinamento e de construção de uma ciência do Direito Eleitoral, este ramo prenhe de conceitos indeterminados e que geram uma liberdade inaudita da jurisprudência, como se fossem não apenas indeterminados, mas conceitos vazios: “há apenas, como consectário disso, a irracionalidade jurídica, o decisionismo voluntarista e uma crise de segurança jurídica”[14].
Só uma doutrina malcriada nos salvará. A bajulação incentiva o desastre da famigerada sempre novidadeira lei das inelegibilidades.
Enfim, nada espelha melhor a tragédia dessa lei que o indeferimento do registro de candidatura de Deltan, em face desse ambiente de correção dos males de nossa democracia pela cassação judicial de mandatos, sob a ótica da periculosidade de Michel Foucalt[15]. A decisão seguiu o que se vê todos os dias para milhares de candidatos: a ausência de preocupação com a fundamentalidade dos direitos políticos. Absolva-se a decisão, portanto.
E nosso Antoine-Joseph Santerre encontrou-se com sua injustiça guilhotina. Para alguns, merecida recompensa de uma carreira de hostilidade à própria política pela falta de compreensão da complexidade do fenômeno, uma “falta de aderência à realidade”. Para outros, uma chance de voltar ao tema, repetir-se e reclamar que se salvem pelos menos as almas dos candidatos desse caldeirão insensato de inelegibilidades mundanas e criativas.
[1] “q) os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos; (Incluído pela Lei Complementar nº 135, de 2010)”.
[2] A Convenção Americana repudia essa antecipação, porquanto expressamente, afirma no seu art. 9º que a presunção de inocência deve perdurar “enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. Ora, a culpa somente será comprovada ao término do procedimento judicial (afastado o mero procedimento administrativo) e não durante, em um ponto aleatório escolhido pelo legislador como a decisão colegiada, sendo, ela, pressuposto da cominação da sanção. Do contrário, poder-se-ia afirmar que a mesma presunção de inocência vale até o momento do ajuizamento de uma ação de improbidade ou de uma denúncia criminal ou da primeira audiência, por exemplo, esvaziando-se a proteção conferida pela ideia de não se presumir o resultado antes que ele ocorra.
[3] “Em outras palavras, o objeto da controvérsia em apreço não é, como quer fazer crer o recorrido, a possibilidade ou não de se conferir interpretação ampliativa ao termo “processo administrativo disciplinar”. O que aqui se tem é uma conduta anterior e contrária ao Direito para evitar a instauração desses processos, ou seja, fraude à lei”.
[4] São eles “15 procedimentos administrativos de natureza diversa no CNMP, sendo nove Reclamações Disciplinares, uma Sindicância, um Pedido de Providências, três Recursos Internos em Reclamações Disciplinares e, ainda, uma Revisão de Decisão Monocrática de Arquivamento em Reclamação Disciplinar”. Acórdão do Recurso Ordinário 0601407-70.
[5] “Referida manobra, como se verá neste tópico, impediu que os 15 procedimentos administrativos em trâmite no CNMP em seu desfavor viessem a gerar processos administrativos disciplinares (PAD) que poderiam ensejar a pena de aposentadoria compulsória ou de perda do cargo”. Acórdão do Recurso Ordinário 0601407-70.
[6] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-mai-18/renato-ribeiro-cassacao-deltan-consequencias Acesso em 18.05.2023.
[7] A segurança jurídica perde-se, enfim, na impossibilidade do “direito de calcular as consequências do comportamento próprio e alheio”. HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 182.
[8]SALGADO, Eneida Desiree; ARAÚJO, Eduardo Borges. Do Legislativo ao Judiciário: a Lei Complementar nº 135/2010 (“Lei da Ficha Limpa”), a busca pela moralização da vida pública e os direitos fundamentais. A&C- Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 13, n. 54, p. 121-148, out./dez. 2013. Disponível em: http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com/2010/07/vida-pregressa-e-inelegibilidade-hora.html; http://adrianosoaresdacosta.blogspot.com/2012/03/quitacao-eleitoral-e-hipermoralizacao.html; Acesso em: 18.05.2023.
[9] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino Ferreira. O controle de convencionalidade da Lei da Ficha Limpa: direitos políticos e inelegibilidade. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2019, 3ª edição; FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino; MEZZAROBA, Orides. A Lei da Ficha Limpa: o Cavalo de Troia do protagonismo do Poder Judiciário. Revista dos Tribunais [Recurso Eletrônico]. São Paulo , n.974, dez. 2016; Disponíveis em: https://www.conjur.com.br/2020-dez-22/opiniao-detracao-condenacao-criminal-lei-ficha-limpa; https://www.estadao.com.br/politica/blog-do-fausto-macedo/lawfare-a-revanche-contra-o-ministerio-publico/; https://noticias.uol.com.br/colunas/abradep/2021/11/09/o-pix-eleitoral-e-deltan.htm Acesso em: 18 maio 2023.
[10] Cuida-se da Resolução CNJ n. 123 de 07/01/2022. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4305 Acesso em: 18 maio 2023.
[11] FERREIRA, Marcelo Ramos Peregrino. Da Democracia de Partidos à Autocracia Judicial: o caso brasileiro no divã. Florianópolis: Habitus. 2020.
[12] JUNIOR, Ophir Cavalcante. Ficha Limpa: A Vitória da Sociedade Comentários à Lei Complementar 135/2010. Conselho Federal da OAB.
[13] Comissão de Veneza Trata-se do corpo consultivo do Conselho da Europa sobre temas constitucionais. European Commission for Democracy through Law, Code of Good Practice in Electoral Matters: Guidelines and Explanatory Report – Adopted by the Venice Commission at its 51st and 52nd sessions (Venice, 5-6 July and 18-19 October 2002). Disponível em:
<http://www.venice.coe.int/webforms/documents/?pdf=CDL-AD(2002)023-e>. Acesso em: 18 maio 2023.
[14] COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral. 10º. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 17.
[15] “A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades e não ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam”. FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau edit., 1996, p .85.e
#FOCONAFONTE : https://www.conjur.com.br/2023-mai-19/marcelo-ferreira-absurdo-ficha-limpa-nao-condenacao