“Quando o Estado decide restringir um direito em nome de uma suposta celeridade do Judiciário, joga sobre o cidadão a responsabilidade sobre sua própria morosidade. Para o advogado Marcos da Costa, que acaba de deixar o comando da OAB de São Paulo, a maior seccional do país, isso acontece por falta de disposição dos agentes estatais de discutir os verdadeiros gargalos de sua prestação de serviços.
“Em vez de fazer autocrítica, fica mais fácil para alguns juízes e promotores, que não tem uma visão do que é efetivamente justiça, atribuírem a responsabilidade à própria sociedade através do exercício do direito de defesa, instrumentalizado pela advocacia”, afirma em entrevista à ConJur.
O fato de o país já ter passado a marca de 1 milhão de advogados é outro ponto que preocupa Marcos da Costa. Esse número de advogados, diz, é resultado de “um verdadeiro estelionato educacional” que permitiu a abertura de faculdades “sem nenhuma preocupação com a boa formação do bacharel”.
Como forma de garantir a qualidade do trabalho prestado pela advocacia, Marcos da Costa defende a aplicação do Exame de Ordem. A prova, segundo ele, seleciona os profissionais mais preparados para atuar na defesa do cidadão. “Acabar com o exame de Ordem significa destruir o sistema de justiça.”
Marcos da Costa presidiu a OAB de São Paulo por dois mandatos. Ao lado de Luiz Flávio Borges D’Urso, a quem sucedeu, foi o presidente mais longevo da seccional. Foi candidato a um terceiro mandato nas eleições deste ano, mas ficou em segundo lugar.
Leia a entrevista:
ConJur — O senhor esteve à frente da OAB-SP durante seis anos. Qual é o balanço que faz da sua gestão?
Marcos da Costa — Trabalhamos fortemente em todas as vertentes de atuação da Ordem. Ainda na gestão do ex-presidente D’Urso, quando fui tesoureiro, passamos publicar o orçamento, uma iniciativa que permitiu a transparência em termos do uso do dinheiro da Ordem. Hoje o orçamento e as demonstrações financeiras são publicados na íntegra. Conseguimos também a aprovação de uma lei para impedir que voltasse a ter calote, promovido na gestão passada pela Defensoria Pública, e hoje há recursos especiais para pagamento dos honorários dos 50 mil advogados que trabalham com advocacia judiciária. A OAB foi ao CNJ combater a violação das nossas prerrogativas, como quando o ex-presidente do Tribunal de Justiça [Ivan Sartori] tentou impedir o acesso da advocacia no período da manhã aos fóruns e conseguimos derrubar essa cláusula. Houve uma preocupação muito grande com o jovem advogado e, por isso, mudamos o regimento interno. Foi a primeira proposta na minha primeira gestão: excluir uma cláusula que impedia que advogados com menos de cinco anos de profissão participassem das comissões. Hoje a jovem advocacia tem direito a voto, mas não a ser votada.
ConJur — Como ficou a defesa das prerrogativas?
Marcos da Costa — Sem dúvida nenhuma essa foi a gestão com mais mandados de segurança, Habeas Corpus e assistências prestadas a advogados. Na vertente corporativa, como a defesa das prerrogativas, conseguimos duas alterações no Estatuto da Advocacia, uma delas prevê prerrogativas exclusivas à mulher advogada e outra passou a prever como prerrogativa do advogado participação nas investigações — procurando manter a paridade de armas. Mudamos o regimento para permitir que o processo do desagravo tivesse velocidade maior. No CNJ tivemos um pequeno avanço, mas importante, de que mulheres só podem ser revistadas nas entradas dos fóruns por agentes femininas e não tenham suas bolsas violadas por homens. O CNJ também proibiu o Tribunal de Justiça de estimular a participação no Cejusc [centros de conciliação e mediação] sem a presença do advogado, e foi recomendado que todas as comunicações do órgão destaquem a importância de se fazer representar por advogados.
ConJur — A OAB se colocou como instância de defesa do direito de defesa?
Marcos da Costa — A Ordem foi extremamente atuante. Do ponto de vista da defesa da cidadania, participamos das discussões de políticas públicas e nos fizemos presentes em todos os fóruns onde havia debates. Com o convênio de assistência judiciária firmado pela Defensoria Pública, ajudamos no atendimento de pessoas carentes no estado e foram denunciadas situações de violações a direitos ou princípios constitucionais. Quando necessário, o Judiciário foi acionado.
ConJur — Pode me dar alguns exemplos?
Marcos da Costa — A OAB-SP foi ao CNJ para denunciar o caso da mulher que sofreu uma laqueadura forçada. Quando teve a invasão da Assembleia Legislativa por jovens protestando pela merenda escolar, a Ordem intermediou a saída deles e conversou para que o presidente assumisse o compromisso de criar a CPI. Na invasão do gabinete do presidente Michel Temer na Avenida Paulista, eu conversei com o Ministro de Justiça na época e com o secretário de Segurança Pública para encontrar um caminho para a desocupação pacífica.
Recentemente, a greve dos caminhoneiros que paralisou o Brasil e levou ao desabastecimento geral ia fazer com que o ministro da Defesa anunciasse que estava colocando as tropas nas ruas para combater os caminhoneiros. Quando recebi essa informação, estava fora do estado e antecipei a volta, tive um encontro com os caminhoneiros no sábado, negociei com o governo federal através do ministro Eliseu Padilha [Casa Civil], levei os caminhoneiros para conversar com o governador de São Paulo [Márcio França]. Fizemos reuniões sábado, domingo e na segunda-feira a greve tinha acabado.
A OAB também promoveu campanhas importantes como a “Corrupção Não”, em que apresentamos propostas de caráter preventivo para a mudança do ambiente que levou a esse grau generalizado de corrupção no país.
ConJur — O que acha de a OAB ter que prestar contas ao TCU?
Marcos da Costa — Um absoluto equívoco. A Ordem tem sistemas internos de controle de contas que são exemplares. A Ordem não tem um centavo de dinheiro público, não tem por que um agente público — que tem que cuidar, por exemplo, dos recursos que estão sendo investidos em uma obra do governo federal —, deixar de se preocupar com desvios de dinheiro público para controlar valores que não pertencem ao público, mas sim à advocacia. O Tribunal de Contas da União deveria cuidar com mais afinco das destinações de valores públicos a fim de evitar esse quadro de má gestão e corrupção que nós vivemos no país, e não desviar sua função para cuidar de uma entidade que não tem dinheiro público.
Já há decisão do Supremo Tribunal Federal dizendo que a Ordem não deve submeter ao TCU para garantir sua independência [ADI 3.026]. Toda vez que a Ordem se posiciona sobre definições públicas por parte de governos tem como resposta tentativas de acabar com o Exame de Ordem, aumentar o número de faculdades de Direito e submeter as gestões da Ordem à fiscalização pública. Já se fez isso na época do governo militar, quando se quis que a Ordem se submetesse ao Ministério do Trabalho, e continua fazendo hoje através do TCU.
ConJur — É possível traçar o que motiva o interesse de controle da OAB?
Marcos da Costa — Fazer uma menção hierárquica da entidade ao poder público, que não poderia haver. O papel histórico e legal que a Ordem exerce faz com que ela precise ser independente para promover discussões sobre políticas públicas e também críticas quando necessário às decisões tomadas por algum dos três poderes.
ConJur — O senhor vê membros do Ministério Público disseminarem a ideia de que a defesa atrapalha a “marcha processual”, numa tentativa de prejudicar a imagem pública da advocacia?
Marcos da Costa — Alguns magistrados e promotores, que são exceção, têm essa visão equivocada de que o exercício da advocacia atrapalha a realização da justiça. Há falta da capacidade do Estado em responder de forma adequada a sociedade, que reclama da morosidade e que aponta a morosidade como culpa pela impunidade que, por sua vez, é a culpa da violência e criminalidade. Em vez de o Estado fazer a autocrítica e verificar por que não consegue atender à demanda por justiça, acaba impondo sobre os ombros dos cidadãos a responsabilidade por uma justiça que ele deveria prestar. Também deveria discutir porque ainda se tem férias de 60 dias no Brasil ou porque, passados 30 anos da Constituição, a Loman ainda não foi levada ao Congresso Nacional para ser discutida à luz da Constituição de 1988.
Fica mais fácil para esses juízes e promotores, que não têm uma visão do que é efetivamente justiça, passar a atribuir a responsabilidade à própria sociedade através do exercício do direito de defesa, instrumentalizado pela advocacia.
Na verdade, o que estão questionando é o direito do cidadão de se defender. Eles jogam em cima do direito de defesa do cidadão essa responsabilidade para a morosidade que não pertence ao cidadão, pertence à própria Justiça.
Outra questão é compreender os direitos pertencem à sociedade. Na OAB-SP nós promovemos eventos e debates para fazer com que os cidadão compreenda que a Constituição de 88 não pertence ao Estado, pertence a ele, cidadão. Portanto, ele deve ser a trincheira de defesa dos próprios direitos não entrando nesse discurso do Estado, que no final das contas representa prejuízo para o cidadão, no sentido de ser prejudicado num direito ou exercício de defesa na forma plena.
ConJur — Crítica feita com certa frequência às OABs é que elas se tornaram “sindicatos de luxo”. Deixaram a preocupação institucional com a advocacia de lado para oferecer serviços aos advogados, como desconto em aluguel de carro, em remédios, parcerias com companhias áreas e coisa do tipo. A crítica faz sentido?
Marcos da Costa — A Ordem tem que auxiliar o advogado prestando serviços. A OAB procura defender, cumprir seu papel no que diz respeito à seleção através do Exame de Ordem, a disciplina através do trabalho ético, e a defesa através de prerrogativas. Ao procurar solução para a greve dos caminhoneiros, que se encaminhava para um grande conflito nacional, a Ordem também está valorizando a advocacia, mostrando que é uma entidade com posse pelos advogados. Mostrando que o advogado além de ser alguém qualificado para a defesa dos direitos num processo, também cumpre essa função de agente de transformação social.
ConJur — Uma pesquisa recente do sociólogo Bolívar Lamounier sobre a advocacia constatou que a profissão se “proletarizou”. Ou seja, os advogados não se sentem mais parte de uma classe especial de advogados, mas sim trabalhadores como quaisquer outros. O que acha dessa constatação? A sua percepção também é essa?
Marcos da Costa — A advocacia se destaca no país, ao contrário do que a pesquisa procura mostrar, exatamente porque o papel do advogado não é só técnico, mas também de agente de transformação social, que desenvolvemos desde as duas primeiras faculdades de Direito no Brasil, em São Paulo e em Pernambuco. A comprovação disso é que a classe continua tendo a maior representação junto às assembleias, câmaras municipais e ao Congresso Nacional. Em 2018, o presidente da República, o governador do estado e o prefeito da maior cidade, que é São Paulo, eram advogados, o que mostra que a classe ainda tem sua representação efetiva honrando a tradição de grandes lideranças da advocacia.
ConJur — O senhor entende que a convivência harmônica com as instituições que protagonizam a jurisdição deve ser obtida a qualquer custo? Mesmo que haja sacrifício das prerrogativas essenciais da advocacia?
Marcos da Costa — O papel da Ordem, e assim foi desenvolvido na nossa gestão, é de diálogo constante com as instituições. É procurar fazer pontes participando da construção de políticas públicas. É muitas vezes ser agente de desenvolvimento de políticas públicas. Por exemplo, como fazemos com convênios com governos que permitem o combate à violência contra a mulher, a denúncia de racismo, de discriminação de pessoas com deficiência e idosos. Só a OAB faz, é vocacionada para isso.
ConJur — Durante quase toda sua gestão sua foto no perfil do WhatsApp era de uma campanha contra a corrupção parecida com a do MPF. Poucas semanas antes da eleição o senhor a trocou. Por quê?
Marcos da Costa — Eu estava fazendo campanha e precisava dizer que era um candidato que tinha uma chapa e o número da chapa. A Ordem tem a bandeira de defesa dos valores republicanos contra a corrupção, contra a má gestão dos recursos públicos. Criamos uma comissão que andou pelo estado ensinando ao cidadão o que é e qual a importância do orçamento público. Fui pessoalmente discutir as medidas do Ministério Público, chamadas “10 medidas contra a Corrupção”. Mostrei que haviam nas medidas algumas propostas que eram inadmissíveis para o Estado Democrático, como aproveitamento de prova obtido por meio ilícito, a restrição ao Habeas Corpus, a prisão preventiva do investigado para que ele não pudesse ter acesso a recursos para contratar um advogado. Denunciei isso, mas, ao mesmo tempo, fiz propostas de caráter preventivo, mudando o ambiente que levou a esse estado generalizado de corrupção. As medidas repressivas nós já temos, tanto que temos os processos e inquéritos avançando, processos em tramitação, e eventualmente aqueles que foram considerados culpados pela justiça cumpram a sua pena. O que falta a nosso ver são medidas preventivas”.