“Sempre que essa questão do tratamento compensatório ou preferencial para o negro é levantada, alguns dos nossos amigos recuam horrorizados. Ao negro deve ser garantida a igualdade, eles concordam, mas ele não deve pedir mais nada. Na superfície, isso parece razoável, mas não é realista. Pois é óbvio que se um homem entra na linha de partida de uma corrida trezentos anos depois de outro, o primeiro teria de realizar uma façanha incrível a fim de alcançá-lo. (Martin Luther King)
A igualdade, não apenas no plano formal mas também material, constitui um dos eixos centrais da ordem constitucional brasileira. A superação do preconceito e a construção de uma sociedade justa, fraterna e solidária, pautada na dignidade da pessoa humana, é vetor fundamental da Constituição. A inclusão dos negros em situação a possibilitar a igualdade de oportunidades, com a realização de ações afirmativas tais quais as cotas raciais, constitui uma política importante para a constitucionalização do país.
Tornando eficaz tal postulado, o Supremo Tribunal Federal deu provimento, por unanimidade, à ação proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a qual visava à declaração de constitucionalidade da Lei 12.990/2014, que reserva a pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos[1]. No referido julgamento, o tribunal firmou a seguinte tese: “É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o contraditório e a ampla defesa”.
A OAB Nacional defendeu a constitucionalidade da lei calcada em três fundamentos centrais: (i) porque se destina a reduzir a discriminação racial, (ii) porque busca promover a igualdade material, de modo a efetivar a igualdade de oportunidade entre os negros e brancos no país e (iii) porque busca proporcionar uma maior representatividade aos negros e pardos no serviço público federal, “garantindo que os quadros do Poder Executivo reflitam a realidade da população brasileira”.
A Procuradoria-Geral da República defendeu igualmente a constitucionalidade da Lei 12.990/2014. Asseverou que a política de ação afirmativa voltada à reserva de vagas para cidadãos negros em concursos públicos compatibiliza-se com princípios e valores consagrados na Constituição da República de 1988, sobretudo com a garantia constitucional da isonomia material (artigo 5º, caput) e com os objetivos gerais do Estado Democrático de Direito e os fundamentais da República Federativa do Brasil, voltados à construção de sociedade solidária, fraterna e pluralista, à redução das desigualdades sociais e à promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, idade e outras formas de discriminação (Preâmbulo e artigos 1º, V, e 3º)”. Para corroborar esta afirmação, apontou que “[e]m diversos e relevantes eixos da vida e nos correspondentes indicadores, persiste forte desigualdade na sociedade brasileira, associada ao gênero e à cor da pele (vide, por exemplo, o Retrato das desigualdades de gênero e raça, do IPEA)”, o que demonstraria que “o país ainda precisa de políticas que auxiliem a promoção da igualdade material entre pessoas de pele negra e branca”.
O ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso, destacou que, diferentemente da ADPF 186, que discutia a constitucionalidade da política de cotas raciais instituída por ato interno de universidade, a ADC 41, discute lei de iniciativa do Poder Executivo e que foi aprovada por unanimidade no Senado e, por expressiva maioria na Câmara dos Deputados. Portanto, há nessa lei uma carga de legitimidade democrática totalmente diferenciada que imporia um ônus argumentativo superlativo para que o Supremo Tribunal Federal viesse a invalidá-la.
O ministro destacou, em seu voto, a existência de três dimensões da ideia contemporânea de igualdade: formal, material e igualdade como reconhecimento. Consignando a inexistência de violação ao princípio da igualdade no caso sub judice, registrou que a legislação em análise se fundamenta na existência de um racismo estrutural na sociedade brasileira que precisa ser enfrentado, bem como por um dever de reparação histórica a pessoas que herdaram o peso e o custo social do estigma moral, social e econômico, que foi a escravidão no Brasil; e, uma vez abolida, foram entregues à própria sorte, sem terem condições para se integrarem à sociedade.
No tocante à igualdade material, o racismo estrutural gerou uma desigualdade material profunda, e, portanto, qualquer política redistributiva precisará indiscutivelmente cuidar de dar vantagens competitivas aos negros. As estatísticas são gritantes e comprovam o racismo estrutural no país. Embora cerca de metade da população brasileira seja negra, dos 10% mais pobres da população, 72% são negros. “A cor da pele influencia a vida de afrodescendentes em todos os seus aspectos: nas condições de moradia e saúde, nas relações com a Polícia e com o Estado, na educação e ainda, com especial relevância, no mercado de trabalho. Nas favelas, 66% dos domicílios são chefiados por negros. No sistema carcerário, 61% dos presos são negros; e 76,9% dos jovens vítimas de homicídios são negros. E as estatísticas continuam com taxas de analfabetismo; negros percebem, em média, 55% da renda dos brancos em geral. Portanto, os números demonstram a persistência do racismo estrutural a justificar a validade do tratamento desequiparado na Lei”.
Por fim, Barroso destacou, no campo da igualdade como reconhecimento, a importante dimensão simbólica que é a de ter negros ocupando posições de destaque na sociedade brasileira. Esse fato impacta na autoestima e no empoderamento das pessoas pretas e pardas: “o que estamos tratando aqui é do empoderamento das pessoas para que, independentemente do que outros pervertidamente pensem ou façam, elas não aceitem o preconceito e levem sua vida entrando pela porta da frente.” Essa dimensão simbólica impacta não apenas na comunidade negra, mas em toda a sociedade, que deixa de enxergar a população negra como a destinatária de funções subalternizadas, para ocupar cargos de poder e direção. Por fim, evidentemente, há o papel de que o pluralismo e a diversidade tornam qualquer ambiente melhor e mais rico.
Em julgamento anterior, o STF já havia negado provimento à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186/DF. A ADPF visava à declaração de inconstitucionalidade de atos da Universidade de Brasília (UnB), os quais instituíram o sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial no processo de seleção de estudantes.
O arguente sustentou que a discriminação existente no Brasil é uma questão social e não racial e que cotas para negros na universidade promovem a ofensa arbitrária ao princípio da igualdade, gerando discriminação reversa em relação aos brancos pobres.
O relator da ação, ministro Ricardo Lewandoswki, ponderou que enfrentar a questão da constitucionalidade dos programas de ação afirmativa instituídos em âmbito universitário exigiria revisitar o princípio da igualdade em seu duplo aspecto, formal e material. A Carta de 88 não teria se limitado à igualdade formal, pois teria buscado também emprestar a máxima concreção a esse postulado, de maneira a assegurar também a igualdade material de acordo com as diferenças que circundam os grupos sociais.
Por sua vez, o alcance da igualdade material demanda do Estado tanto políticas de cunho universalista, como ações afirmativas, que atingem determinados grupos e lhes atribuem certas vantagens, por um tempo limitado, permitindo a superação de desigualdades históricas. A adoção de tais políticas integraria o próprio cerne da democracia que, devido à evolução histórica e conceitual, alberga a isonomia como possibilidade de crescimento do indivíduo.
Sob a ótica distributiva, referendada pela Constituição, a aplicação do princípio da igualdade deve considerar a posição relativa dos grupos sociais entre si para incluir grupos excluídos ou marginalizados. A observância aos objetivos gerais buscados pelo Estado Democrático de Direito tornaria essencial calibrar os critérios de seleção à universidade. Desse modo, reservar vagas para grupos em desvantagem é uma forma de temperar critérios de seleção que consolidam as distorções já existentes.
Ademais, pontuou que adotar critérios étnico-raciais no processo de seleção beneficia a sociedade e a academia com o pluralismo de ideias, um dos fundamentos do Estado Brasileiro. Frisou que a raça não deve ser tratada como um fator biológico, porquanto se trata de um conceito histórico-cultural utilizado para discriminar negativamente determinados grupos, autorizando que o Estado se utilize da discriminação positiva para incluir tais grupos.
A acertada decisão do Supremo Tribunal Federal em ambos os casos joga luz sobre o compromisso constitucional assumido pela República Brasileira na construção de uma sociedade igual, fraterna e solidária. Igualdade essa, há muito, que não se esgota na premissa de que a lei trate a todos como iguais, mas exige que essa isonomia seja refletida, material e concretamente, nas relações sociais, nas oportunidades, na fruição de direitos e na dignidade de cada ser humano, parte constituinte dessa sociedade.
A evidente desigualdade, ainda hoje, existente entre brancos e negros impacta no acesso à educação, no mercado de trabalho, na fruição de direitos, implicando na percepção de salários inferiores pela população negra, e no ínfimo acesso a cargos de direção e poder na sociedade.
Os anos de escravidão negra no Brasil deixaram uma forte herança, ainda mais difícil de ser enfrentada diante do mito da democracia racial, da ideia de que o brasileiro, por ser um povo miscigenado e diverso não é racista. Ao contrário, o racismo, de tão arraigado, tornou-se natural, encoberto nas relações hierarquizadas entre brancos e negros.
A negação do racismo impede, sistematicamente, a instituição de políticas afirmativas que reparem as desigualdades. Não se trata de uma reparação histórica, na acepção de algo que ocorreu no passado e ficou para trás. Trata-se de uma reparação da desigualdade surgida com o regime escravocrata, mas que (re)produz, cotidianamente, práticas racistas e discriminatórias em todos os âmbitos da sociedade brasileira, de forma estrutural e estruturante.
A inclusão da população negra como sujeitos de direito, merecedores de igual respeito e consideração na sociedade democrática não é favor, é dever, caso queiramos, ainda, nos intitularmos uma sociedade plural e democrática.
A presença de pessoas negras em posições de destaque e direção na sociedade é, certamente, simbólica e empoderadora para a população negra, mas, é, seguramente, indispensável para a superação do colonialismo e para a construção de uma sociedade verdadeiramente plural e inclusiva.”
[1] Trata-se da ação Declaratória de Constitucionalidade 41, julgada pelo Plenário do STF em 08/06/2017.