*Entrevista originalmente publicada no dia 22 de abril.
“Os auxílios que magistrados recebem por fora do salário vêm sendo criticados por terem se transformado em burlas ao teto salarial do funcionalismo público, definido na Constituição.
Para o presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (RJ e ES), desembargador André Ricardo Cruz Fontes, esses benefícios não deveriam existir, e os juízes de todos os ramos da Justiça — estadual, federal, do trabalho, militar — deveriam ter o mesmo padrão de remuneração.
No entanto, Fontes se opõe a uma reforma da Previdência que diminua as aposentadorias da categoria. Segundo ele, os salários mais altos oferecidos por outras carreiras públicas e privadas já estão afastando talentos da magistratura, movimento que se intensificaria com pensões mais enxutas.
Embora defenda a instalação dos tribunais regionais federais que foram barrados em 2014 pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa, o presidente do TRF-2 afirma que o Brasil não irá resolver o problema do excesso de processos com o aumento do Judiciário.
De acordo com o desembargador, as empresas prestadoras de serviços precisam respeitar ordens judiciais, não prosseguir desrespeitando os direitos dos consumidores. Da mesma maneira, aponta, entes estatais, como o INSS, deveriam ir atrás dos segurados e só deixar que as questões realmente controversas fossem para a Justiça.
Na presidência do TRF-2 até 2019, Fontes vem buscando aumentar a eficiência ao mesmo tempo que combate a falta de recursos. Uma de suas principais apostas é a implantação do sistema eletrônico e-Proc, mais moderno do que o antigo Apolo. Atento às demandas igualitárias, o desembargador federal também busca garantir combater discriminações a mulheres, homossexuais, transexuais e negros.
Leia a entrevista:
ConJur — Como a crise econômica tem afetado os processos que chegam ao tribunal?
André Fontes — O aumento do desemprego e as mudanças da política trabalhista fizeram com que algumas questões viessem à tona. Por exemplo, contribuição por tempo de serviço. Geralmente, não é mais pelo empregador, e sim pelo empregado, o que às vezes dificulta a correspondência de documentos do INSS. Tivemos dificuldade na questão tributária. Mas o Rio de Janeiro hoje é o estado que mais arrecada no âmbito federal. Cerca de 30% da arrecadação nacional vêm da segunda região. O tribunal arrecada muito mais nas questões para a União que tem gastos próprios.
ConJur — O que explica esse percentual tão alto de arrecadação? Afinal, a segunda região engloba apenas dois estados.
André Fontes — Dois motivos. Primeiro, pelos centros econômicos que estão na região, ainda que ela seja pequena. Em segundo lugar, nosso sistema de informática é melhor e, portanto, é mais fácil de identificar os casos. Juntando os dois, isso permite que a Receita tenha um contato maior conosco, gerando o aumento da arrecadação. O fato também de essas questões criminais terem aflorado tem levado a um sistema de controle interno das empresas mais rigoroso. E aí o Fisco tem tido mais informação ainda.
ConJur — As execuções fiscais são o grande gargalo da Justiça, especialmente da Justiça Federal. O senhor concorda com a ideia de resolvê-las de maneira extrajudicial?
André Fontes — Houve um projeto há uns 15 anos para que a execução fiscal fosse extrajudicial, mas houve muita resistência. O próprio Judiciário não era unânime em defesa dessa ideia. Houve dois pólos diferentes: um deles negava veementemente a possibilidade de forma extrajudicial de se fazer a execução. Eu permaneci com a ideia de que deveria ser, sim, extrajudicial. Mas não tivemos êxito. Então, nós estamos com um número excessivo de execuções fiscais, e a resposta é gráfica.
A nossa arrecadação é a maior do Brasil. E, ao mesmo tempo, nós temos o problema de termos uma situação curiosa. Em um processo, a cobrança é de R$ 5 milhões, R$ 100 milhões, mas o do lado é de R$ 5 mil, tratados indistintamente. Eu me pergunto: não seria o caso disso ser tratado extrajudicialmente? O dos R$ 5 mil, dos R$ 10 mil. A pessoa nem sabe que há processo em curso, às vezes não sabem que há débito porque, a rigor, não devem nada — pagaram o tributo, mas problemas práticos, o nome mudou, o CPF está errado etc., ela fica anos respondendo a esse processo.
ConJur — Esse é o tema de maior demanda na 2ª região?
André Fontes — Sim. Em segundo lugar, ficam as matérias previdenciárias, tanto no TRF-2 quanto nos juizados especiais. O terceiro posto envolve questões de cobrança da Caixa Econômica Federal, que não são poucas, mas que, pela natureza privada de alguns créditos, exigiriam maior comunicação. Mas a Caixa também tem feito o dever de casa e conseguido trazer para nós condições melhores de apresentação das questões. Mesmo assim, o volume é muito grande, e nós, diferentemente da Caixa, não podemos crescer facilmente. A Caixa tem a possibilidade de aumentar e está se empenhando nisso. Mas nós não temos, nós dependemos de lei para aumentar nosso tribunal. E também temos as questões administrativas que envolvem planos econômicos, servidores públicos. E aí as classificações vão sendo reduzidas até os casos mais incomuns, como sequestros internacionais de crianças.
ConJur — Qual é o principal problema do tribunal hoje?
André Fontes — O principal problema é o nosso sistema de informática, mas ele está sendo atacado. O segundo maior problema é a falta de comunicação. O terceiro maior, o qual também enfrentamos, é a transparência. O quarto maior problema é a falta de mão de obra, que estamos procurando melhorar com nossos sistemas. E o quinto é a falta de quadros, mas nós estamos promovendo concurso para juízes, servidores e estagiários para resolver isso.
ConJur — O Código de Processo Civil trouxe celeridade aos processos?
André Fontes — O CPC foi um avanço em uma grande questão: foi democrático na sua formação. Os outros códigos eram um produto do laboratório, quando não de transferência de tecnologia, porque eram reproduções de textos de outros países. Esse foi o primeiro código de amadurecimento. Também reconheceu em muito o esforço dos advogados na sua contribuição de função essencial à Justiça. O problema é que o CPC, em vez de resolver algumas questões, acabou gerando outras dificuldades.
ConJur — Quais?
André Fontes — Por exemplo, os embargos infringentes. Deveriam ser atualizados ou extintos, mas acabaram gerando uma figura mais perversa, uma espécie de expansão de direito, que é o artigo 942, um colegiado de formação integrada com outros, de forma a permitir a revisão. Nem todo mundo interpunha embargos, mas agora todos são obrigados a fazer isso. Há tantos recursos nos tribunais que ninguém compreende porque o processo é só petição, defesa e sentença. Hoje o processo é recurso, recurso, recurso.
ConJur — A criação de tribunais vai ajudar a dar conta do volume de processos? O Congresso chegou a aprovar a criação de cinco TRFs, mas por uma liminar do ministro Joaquim Barbosa a emenda constitucional nunca entrou em vigor.
André Fontes — Sim, vai ajudar. Aqueles tribunais que foram aprovados deveriam ser suplementados. Tem sentido um acreano ou um rondoniense ter que pagar uma fortuna para ir a Brasília, ao passo que no Rio de Janeiro as instancias são menores e os advogados têm mais acesso a elas? O ideal seria que Manaus, Curitiba tivessem os seus tribunais. O ideal seria que Minas Gerais, que tem uma proeminência econômica invejável, também tivesse seu tribunal. Esses tribunais foram pensados, discutidos. Depois de um longo consenso, decidiu-se criar as novas cortes. E depois elas foram suspensas, em uma conclusão concentrada, limitada, com um argumento que poderia ter sido trazido antes. Mas o aumento dos tribunais é um contrassenso no geral. O ideal seria que nós nos concentrássemos mais nas sentenças, nos acórdãos, e os tribunais superiores ficassem na sua função de preservar o espírito da Constituição. Porque hoje, por exemplo, nós temos um Tribunal Supremo com uma ampla gama de desafios, que nenhum homem ou mulher tem condição de enfrentar. Eles julgam de tudo.
ConJur — O incidente de resolução de demandas repetitivas pode ajudar a mudar esse cenário?
André Fontes — Isso foi o resultado de um problema que nós criamos, e que está muito longe de ser como é na Alemanha, de onde nos inspiramos, pois lá há muito menos processos. Nós copiamos o controle de constitucionalidade dos Estados Unidos, mas raramente lá há controle de constitucionalidade, se comparado com o Brasil, onde isso ocorre a todo o momento. Como nós podemos copiar um sistema que funcionou bem lá dando aqui dimensões astronômicas, achando que isso é mera aplicação de um raciocínio? O controle da constitucionalidade, as demanda repetitivas, têm um número mais ou menos razoável, e não de milhões de causas. Tudo, talvez, por falta de uma atitude mais preventiva.
ConJur — Em que sentido?
André Fontes — Por exemplo, as agências reguladoras deveriam cuidar dessas questões, criando formas efetivas de soluções prévias. Mas deixam tudo para o Judiciário resolver. O INSS deveria procurar os seus próprios beneficiados e deixar que apenas as questões realmente controvertidas venham para cá. Até os anistiados precisaram ir à Justiça para postular algo que a lei lhes atribuiu. Na Alemanha e na Espanha o governo vai atrás do anistiado, bate na porta dele e diz que ele tem direito ao benefício. Aqui tem que ir à Justiça, a União resiste, diz que não vai pagar. E o Judiciário fica abarrotado de discussões que não terminam nunca. É para isso que foi feito o Judiciário? Para validar, homologar questões que já estão definitivamente estabelecidas na Constituição?
ConJur — Meios alternativos de resolução de conflitos ajudam a resolver?
André Fontes — Vejo com bons olhos os meios extrajudiciais de resolução de conflitos, como conciliação, mediação e arbitragem. Mesmo assim, o volume é grande, porque os casos que envolvem esses meios alternativos ainda não têm grande dimensão na tradição brasileira. O TRF-2 tomou a frente, criou formas de conciliação de processos ainda não ajuizados. Mas não é tarefa que, a rigor, deveria ser atribuída a nós. o sistema já deveria permitir essas conciliações. O que não podemos é ter o maior número de causas trabalhistas do mundo, o maior número de advogados do mundo, o maior número de faculdades de Direito no mundo, achando que a solução é aumentar o Judiciário.
ConJur — Qual é?
André Fontes — A solução é criar formas inteligentes de intervenção. Por que a pessoa tem que ficar brigando na Justiça todo mês porque uma companhia de gás, de telefone, de internet, de televisão a cabo não cumpriu a decisão? Não seria o caso de, uma única vez, “não pode”, ponto? Mas não, o sujeito é obrigado a, todo mês, postular em juízo. Aí dizem que o Judiciário não terminou o trabalho. Como, se o Judiciário dá uma ordem e não se consegue cumprir, porque ela vem acompanhada de outra no mês seguinte, mais outra no mês subsequente? Com isso, o Judiciário acaba sendo responsável pela vida cotidiana do cidadão. Não é para isso que o Judiciário existe.
ConJur — Como o senhor avalia a paralisação de juízes federais, convocada pela Ajufe?
André Fontes — Lamento que o próprio Judiciário não tenha resolvido isso. Recentemente, recebi um filme de duas crianças, um menino e uma menina, recebendo dois copos de bala. O menino com o copo de bala cheio, a menina com o copo de bala pela metade. E aí, a menina olhava para o copo de bala do menino e via que o dela tinha metade, e ele tinha o copo cheio. E o menino dizia: “Por que meu copo está mais cheio e o dela é menor?”. Aí a pessoa dizia: “Porque ela é menina. Menina ganha menos”. É uma paródia para mostrar a situação da mulher no mundo. Mas eu pergunto: tem sentido um juiz de um tribunal ter o copo cheio de bala e o outro ter só metade? Por que não pode haver uma uniformização? Encontrou-se uma solução com uma nomenclatura que não era a melhor, que era “auxílio-moradia”. Isso para tentar manter a equiparação. Mas tudo que é mal feito está errado. Não há um padrão único de pagamento. Um estado às vezes paga três vezes mais do que o outro com o PIB muito maior. Então, a greve é muito mais um alerta, uma provocação a essa ideia de que os copos das crianças não devem ser diferentes porque um é menino e outra é menina, e nem porque um é juiz federal e o outro é estadual, do trabalho.
O que ocorre é que há pisos diferentes para a magistratura, que, a rigor, é uma só. E a greve, na verdade, é muito menos reivindicatória do que de provocação do Judiciário a resolver seus próprios problemas, acabar com discrepâncias. Um juiz pode fazer isso, outro não pode fazer aquilo. Como? Um homem do povo pensa em uma Justiça só. Aí ele pega esses exemplos extremos: um juiz que está fazendo greve está ganhando X, e o outro está fazendo greve porque não está ganhando X. Na visão do homem comum, isso é uma contradição. A greve é a última consequência, o último momento de um desastre na política remuneratória do Judiciário, que deveria ser uma só. Como deve ser um só o salário mínimo e que, na prática, acaba sendo diferente. Como deveria ser uma só a Previdência, para que todos tivessem as mesmas vantagens. Como isso não foi feito, essa greve, muito antes de parecer imoral ou injusta como foi tratada, está provocando uma discussão. E fico feliz que no meu WhatsApp haja reclamação, haja debate, e que as pessoas possam, de fato, saber que os problemas também estão dentro do Judiciário, e não fora dele.
ConJur — Os auxílios que os magistrados recebem vêm sendo questionados. Qual é a sua opinião sobre esses auxílios?
André Fontes — Os magistrados não deveriam receber. Assim todos teriam um patamar único de remuneração, nacionalmente estabelecido. Esses benefícios só foram pagos para resolver aquele problema antigo, o famoso jeitinho brasileiro. Mas não é assim que as coisas funcionam. Se você, na faculdade, não tem um apagador, vai ao banheiro pegar papel higiênico para apagar o quadro. Foi isso que fizemos. O ideal é que todos trabalhem da mesma forma. São só 18 mil juízes para 200 milhões de brasileiros.
Será que 18 mil juízes não poderiam ter um tratamento tal que pudesse ser disciplinado, organizado? Será que não podemos organizar a magistratura pelo menos uma vez na vida? É tão difícil organizar a magistratura? Será que não podemos estabelecer um comando, alguém que diga “isso pode” e “isso não pode”? Ou todos são juízes ou todos não são juízes. Ou a gente é da classe ou é de segunda classe. Mas o povo precisa também ter respostas claras a esse respeito. Essas críticas, muitas vezes em forma de comentários não muito agradáveis, são importantes para difundir a ideia de que a coisa precisa ser alterada e que não é possível mais haver privilégios de nenhuma espécie. Que o povo tenha o tratamento igual dos juízes e que acabe com essa proporção entre homem do povo e o mais rico. Que todos tenham o patamar igual de remuneração.
ConJur — A Ajufe diz que os juízes federais estão sob ataque porque combatem a corrupção. Faz sentido isso?
André Fontes — Todas as críticas que recebemos têm um fundo de verdade. Agora, que a “lava jato” teve um papel definidor na política brasileira, no Judiciário brasileiro, na sociedade brasileira, não sou eu que vou negar. Seria muito leviano de minha parte dizer que isso não provoca reações. A “lava jato” é uma nova forma de combate a corrupção. E o Judiciário, ao julgar esses casos, dá a eles uma nova dimensão, comparável ao movimento Diretas Já.
ConJur — Os magistrados estão recebendo proteção especial por conta dessas reações?
André Fontes — O TRF-2 é o único que usa a Polícia Militar para defender e proteger os juízes que estão com a “lava jato”. Até hoje não temos estrutura interna com agente armado. Nós sempre nos valemos de ajuda militar, no Rio e no Espírito Santo. Quem é o alvo da “lava jato” no Rio de Janeiro? É o estado do Rio de Janeiro. Mas os policiais trabalham conosco. Não só os militares, mas também os civis. Comprometidos nessa causa e no próprio juramento que fizeram, têm conseguido separar o joio do trigo. Porque o governo do estado foi alvo de crimes – ao menos, os governos anteriores. E o governo atual tem permitido que nós recebamos essa cooperação policial. E aí eu pergunto: como isso é possível, se o governo do estado tem sido alvo a todo o momento? Nós estamos em posição de Estado. Eu tenho, ao mesmo tempo, que respaldar as ações dos juízes e postular os policiais. E, pior, temos que ter policiais aqui que, por destino da vida, não podem ter sequer uma multa de trânsito. Porque senão vão falar “olha quem está no tribunal, um policial que recebe multa de trânsito, um policial que um dia bebeu e foi pego na Lei Seca”.
O mesmo vale para mim. Senão vão falar “ele é juiz da ‘lava jato’ e está violando leis de trânsito”. Eu peço recibo de tudo, faço um controle rígido do meu Imposto de Renda, das minhas contas bancárias, porque eu não posso ter uma falha. É nesse clima que eu sou obrigado a conversar com os prefeitos, que têm os seus problemas, seus desafios, suas prioridades, com o governo do estado, que também tem seus problemas, seus desafios, suas prioridades. E que nos cede, no meio desse tiroteio jurídico, policiais competentes, dedicados, para proteger o juiz Bretas, por exemplo.
ConJur — Há desembargadores do TRF-2 recebendo o mesmo tipo de proteção especial que o juiz Bretas está recebendo?
André Fontes — Não, é só ele que recebe. Nós temos procurado dar uma segurança melhor aos nossos juízes, mas o juiz Bretas está em uma situação muito delicada. Não posso entrar em pormenores, mas os policiais ficam 24 horas por dia com ele.
ConJur — Conforme comecem a chegar ao TRF-2 as apelações das sentenças do Bretas, é possível que esse esquema de segurança dele seja estendido a desembargadores?
André Fontes — Comuniquei algumas das providências que eu pretendia tomar. Não me peça quais são, por favor. Mas já estamos agora a replicar o modelo Bretas em um plano para o tribunal. Quem toma conta da segurança do juiz Bretas é a presidência do tribunal. Esta presidência é que tomou a iniciativa. E nós pretendemos manter esse modelo, pois ele deu certo. A prova disso é que as causas da “lava jato” têm resultados muito mais rápidos, por esforço nosso da força-tarefa.
Alguém diria: “Por que essa preocupação toda?”. Porque o povo reclama. Se os processos demoram muito, o povo não aceita. Essa questão da “lava jato” deixou de ser um problema que só afeta as partes e caiu na boca do povo. E como o juiz, na verdade, é um mero administrador da jurisdição, que é do povo, ele é obrigado a mostrar trabalho, desempenhar. E como nós temos dado provas disso? Mostrando que o tribunal tem julgado com certa agilidade, para não parecer que estamos a fazer uma espécie de resistência passiva não julgando, o que seria o fim de uma nova forma de atuação de nosso país.
ConJur — Alguns advogados afirmam que o Judiciário tem se curvado à opinião pública e desrespeitado o direito de defesa dos acusados, especialmente na operação “lava jato”.
André Fontes — Pode ter discussões em um processo específico, em uma decisão específica. Mas isso tudo é muito genérico. Isso cai naquelas máximas de Schopenhauer, que dizia que a melhor maneira de se fugir de um debate é desqualificando seu oponente. Quem fala isso, só fala por um motivo: não tem argumentos. Se tivesse, teria indicado o dia, a hora e o problema, e teria, lá no recurso, conseguido resolver isso. Mas quando não se tem argumentos, a única forma é desqualificar seu interlocutor.
ConJur — Um caso específico que é alvo de críticas é a decisão da 1ª Seção do TRF-2 anulando a decisão da Alerj que havia revogado a prisão preventiva dos deputados estaduais Jorge Picciani, Paulo Melo e Edson Albertassi. A crítica é que a Constituição é clara em dizer que parlamentares só podem ser presos antes do trânsito em julgado em flagrante. Nesse caso, o TRF-2 não agiu para atender à opinião pública?
André Fontes — Aprendemos na faculdade a revisão judicial, o controle jurisdicional dos atos em geral. Mas não há em lugar nenhum do mundo o controle legislativo das ações dos outros. Não existe o controle legislativo dos atos jurisdicionais. O consentimento vem por conta de um problema antigo no Brasil, que era do Executivo mais forte que o Legislativo. Então, as normas do consentimento eram para preservar o parlamentar, na sua vocação, no seu destino de representar o povo. Na democracia representativa, o parlamentar era a pessoa que levava a discussão.
Pois bem. Em um país onde o processamento de crimes que envolvam políticos tem saído dos padrões internacionais, vem a dúvida: eu devo levar esse consentimento ao extremo e criar uma espécie de imunidade absoluta? Onde está escrito isso? A Constituição não disse isso. Seria uma contrariedade à ideia dos Três Poderes achar que um poder não está sob o controle do outro. O Judiciário está sob o controle do Executivo quando ele nomeia seus integrantes, quando ele faz a sanção de leis, quando promove uma série de dados envolvendo a Justiça. O Legislativo também tem. Isso tem a ver com o sistema de freios e contrapesos. Dizer que um poder não está controlado pelos outros é um atentado à nossa república, que tem no princípio dos três Poderes um dos seus temas fundamentais. Todos os países democráticos do ocidente seguem esse padrão. Fugir disso seria uma inovação que não iria para os registros dos livros jurídicos internacionais.
ConJur — E qual é o papel do Judiciário, a seu ver, nesse cenário de crise?
André Fontes — Não deveria ser o atual. O Judiciário deveria poder exercer sua função institucional, com um sistema eleitoral que fosse suficientemente claro, transparente e impeditivo de candidaturas que não pudessem encontrar em fichas-sujas as formas de votação. Acontece que mesmo o povo tendo dito que não quer ficha-suja, o que mais se vê é ficha-suja sendo eleito. O Judiciário vai ter que votar para que os fichas-sujas não fiquem nos cargos, porque o povo quis isso. Então o que o Judiciário está fazendo e cumprir novamente a vontade do povo para que o ficha-suja não seja candidato, não seja eleito e se cometer crimes, que deva se submeter a processos, como todos brasileiros, sem preferências, sem prerrogativas, mesmo sem foro por prerrogativa de função. Todos deveriam ser julgados em primeiro grau. É o que penso. Não importa a sua posição.
ConJur — Nos últimos tempos, magistrados como Joaquim Barbosa, Sergio Moro e Marcelo Bretas viraram heróis nacionais. Qual é o impacto dessas figuras na atração de pessoas para a magistratura?
André Fontes — Meus heróis são José Bonifácio, Tiradentes, Duque de Caxias. Os meus heróis são aqueles que as crianças um dia ouviram na faculdade. Eu cresci com outros heróis — Mario Soares em Portugal, Alfonsín na Argentina, Adolfo Soares na Espanha, Shimon Peres em Israel. Mas eu também vejo mulheres aqui com filhos pequenos a trabalhar. São minhas heroínas. Vejo professores saindo de casa para lecionar com os salários reduzidos sendo atacados por alunos. São heróis. Eu não acho que o exercício da função jurisdicional seja uma hipótese de heroísmo. Deve ser uma perplexidade absoluta para os seus integrantes saber que fazer algo que jurou fazer seja algo excepcional, porque os juízes brasileiros fazem isso todo dia.
Mas não vou negar o fenômeno televisivo. A imprensa tem dado destaque a alguns trabalhos. Mas não deveria ser assim. Na Roma antiga, Modestino nunca foi tratado como herói, embora tenha sido um grande jurista. Os juízes fazem o que têm que fazer. O ministro Joaquim Barbosa teve uma missão muito difícil, que foi o mensalão. O esforço dele — a primeira vez que o Supremo julgou questões dessa natureza — acabou inovando o Judiciário brasileiro, porque os crimes prescreviam lá. Ele movimentou uma máquina parada. O mensalão acabou tendo essa divulgação toda porque nós até suspeitávamos que houvesse corrupção na política, mas nunca havia processo. E agora há. Como há no Judiciário.
ConJur — Há?
André Fontes — Todos os meses há julgamento de processos de juízes aqui, a imprensa registra isso. Mas ninguém está perguntando se o relator do processo do juiz tal é herói. Não são heróis. São todos brasileiros, como um professor, um trabalhador rural, um empresário, um procurador, um juiz, um jornalista. Todos estão na mesma sociedade, na mesma comunidade brasileira. Os debates no Supremo no mensalão marcaram o Direito brasileiro pela altivez, técnica e capacidade, que nunca se tinha visto na televisão. Vimos julgamentos feitos ao vivo e instantaneamente. Não eram julgamentos editados. Isso causou um impacto tão grande quanto a própria ideia de televisão. É óbvio que eu também assisti. Mas eu tenho a impressão que as futuras gerações irão analisar e dizer que isso não foi nada mais do que foi feito porque era a missão de cada um.
ConJur — Mas há juízes que se colocam na ponta de movimentos de reforma sociais, de combate ao crime etc. Não é temerário que um juiz pense que ele é um herói e que deve “fazer o bem para a sociedade” a todo custo?
André Fontes — Quando tomei posse aqui no tribunal, jurei cumprir as leis e a Constituição. Vim para a presidência, jurei cumprir as leis e a Constituição. Faço meu serviço. Venho aqui de manhã, fico de tarde e de noite, faço meu serviço. Tomo decisões a todo minuto. Uma delas vai para a televisão e há um enfoque maior.
A mesma perplexidade que eu tenho de saber que, de milhares, uma foi selecionada, eles devem ter também. Acho muito difícil que eles se reconheçam como heróis. São pessoas simples na sua vida cotidiana, com seus problemas. São todos casados, o que significa que eles têm os problemas que eu tenho também: diálogo em casa, com os filhos. É uma questão difícil. Eles têm seus problemas. Sabe aquela professora que defendeu os alunos na escola que pegou fogo? Essa era uma heroína. Porque não se esperava que a professora morresse para defender as crianças. Essa é uma heroína do meu grupo.
É por isso que existem as garantias da magistratura, para que os juízes não possam sofrer as consequências de tomar decisões. Aqui no tribunal, às vezes tenho que tomar uma decisão, aí dizem, como já aconteceu: “Liga a televisão”. Eu liguei. “Neste momento a Justiça está condenando Fulano de Tal”. Eu tinha acabado de receber o material para ler. Era um caso de um técnico de futebol que eu nem sabia que existia, porque eu não entendo nada de futebol. A imprensa estava lá embaixo por causa de um técnico. Dizendo que ele estava sendo condenado. Tinha feito apenas um requerimento. O que eu fiz: assinei e continuei a trabalhar, e nada mais fiz do que isso. Acho que nós todos cumprimos nossas missões, que não são poucas. Mas dizer que são heróis…
Todos nós somos heróis hoje em dia no Brasil. Fazemos parte da nossa história. Heroína mesmo é a professora que salvou as crianças. Deveria ser lembrada como heroína do ano, sair na capa das principais revistas. Mas o que eles estão preocupados é em saber o que o juiz faz no final de semana, como se ele tivesse que ser santo. Como se a Madre Teresa de Calcutá não tivesse dificuldades um dia de entender matemática, de abrir a Bíblia porque não tinha força nas mãos, porque um dia foi criança.
ConJur — O que acha da intervenção federal?
André Fontes — Veio em bom momento, por uma deficiência nossa. Não temos uma guarda nacional. O ideal seria que não fosse o Exército, porque a sua missão nobre — defender o Brasil — vai acabar ficando prejudicada, tendo que ficar com a sua atenção voltada para o interior do Brasil em vez de voltada para os outros países que têm Exército também. O ideal seria que houvesse uma guarda nacional, como há em outros países. Isso evitaria uma intervenção do nível que nós tivemos aqui. Mas a situação no Rio chegou a um nível realmente fora de controle.
A presença militar nas ruas não é a melhor, não é a mais recomendável. O militar não foi feito para atos de policiamento, mas sim para atos externos, com outras potências, e não aquelas que sejam destinadas ao próprio povo. De certa forma, isso intimida o povo. Por outro lado, é uma situação de gravidade, uma situação crítica nacional, e que o Rio de Janeiro vive. A reação única e possível era a intervenção. É uma intervenção civil, embora comandada por um militar, porque o problema não é de natureza civil, é um problema de segurança. Portanto, uma questão operacional, já que as forças de segurança do Rio de Janeiro não estão conseguindo combater a criminalidade.
ConJur — Qual é o papel do tribunal na intervenção?
André Fontes — O tribunal é, a rigor, quem tem competência para controlar os atos tanto criminais como não criminais, porque são atos de um órgão federal. Isso vai nos trazer algumas dificuldades, porque boa parte das questões será grande novidade. Até então, os enfrentamentos nos morros ou nas ruas do Rio de Janeiro envolvendo armamento pesado eram feitos pela Polícia Militar. Agora nós vamos ter pessoas camufladas, ou seja, com uniforme de guerra, em busca desse armamento e do uso desse armamento para a prática de crimes. Isso era da competência do governo do estado.”
https://www.conjur.com.br/2018-nov-15/entrevista-andre-fontes-desembargador-presidente-trf