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A nova visão sobre o Direito Animal

Em artigo de 6/9/2020 [1], mencionamos proposições inovadoras no Equador, na Nova Zelândia e na Índia e a complexidade conceitual e prática da atribuição de personalidade jurídica à flora e à fauna, mas a inexistência de personalidade jurídica não afasta a evolução no reconhecimento de direitos dos animais, da sua proteção e de uma revalorização de sua presença em nosso meio. Mencionei, então, estar em andamento a formulação teórica do Direito Animal, os direitos fundamentais dos animais não humanos, direitos zoocêntricos, situados em uma nova dimensão dos direitos fundamentais: a quarta dimensão ou direitos fundamentais pós-humanistas (…) “o animal não humano é relevante enquanto indivíduo, portador de valor e dignidade próprios, dada sua capacidade de sentir dor e experimentar sofrimento, seja físico, seja psíquico. É o fato da senciência animal, valorado pela Constituição, que revela a dignidade animal, incompatível com as equiparações tradicionais entre animais e coisas, animais e bens ou com a consideração dos animais como simples meios para o uso arbitrário desta ou daquela vontade humana” [2]. Vejamos a evolução legal.

O Código Civil de 1916 enquadrava os animais e outros seres da natureza como coisas sujeitas à apropriação humana [3], ao penhor agrícola e parceria pecuária [4]. O Código Civil de 2002 igualmente trata os animais com coisas sujeitas à apropriação e passíveis de venda, de penhor em garantia e de parceria [5].

Em paralelo e amenizando essa visão, o DF 24.645/34, de 10/7/1934, estabeleceu medidas de proteção aos animais, dispôs que todos os animais existentes no país são tutelados do Estado e previu sanções de multa e prisão àquele que, em lugar público ou privado, aplicar ou fizer aplicar maus tratos aos animais, definindo maus tratos extensivamente no art. 3º [6] e esclarecendo que a palavra “animal” compreende todo ser irracional, quadrúpede ou bípede, doméstico ou selvagem, exceto os daninhos (art. 17). O decreto, de uma forma inovadora, dispôs que os animais serão assistidos em juízo pelos representantes do Ministério Público, seus substitutos legais e pelos membros da sociedade protetoras de animais.

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A LF 5.197/67, de 3/1/1967, dispõe sobre a proteção da fauna silvestre, reafirmando que os animais de qualquer espécie, em qualquer fase de seu desenvolvimento ou que vivam naturalmente fora do cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos e criadouros naturais são propriedade do Estado, sendo proibida sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha (art. 1º); mas permite, satisfeitas as exigências legais, a captura e manutenção em cativeiro de espécimes da fauna silvestre (art. 8º e seguintes).

A LF 6.938/81, de 31/8/1981, estabeleceu a Política Nacional do Meio Ambiente e indicou como objetivo a manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente um patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido e vedando atividades que afetem desfavoravelmente a biota (art. 2º e 3º inciso III, ‘c’). A Constituição Federal de 1988, por sua vez, determinou no art. 225 que o poder público preserve e restaure os processos ecológicos essenciais e promova o manejo ecológico das espécies e ecossistemas (§ 1º, inciso I) e proteja a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (inciso VII).

Em 15/10/1978, foi aprovada pela Unesco a Declaração Universal dos Direitos dos Animais [7], que em seu preâmbulo considera que todos os animais possuem direitos e a necessária coexistência das espécies humanas e animais, dispondo em 14 artigos, entre outros, que os animais têm direito à vida e à existência, ao respeito, a não ser explorados ou exterminados pelo homem e que estes devem por seus conhecimentos a serviço dos animais, protege-los e cuidá-los; não podem ser submetidos a maus tratos ou atos cruéis e, se necessária, sua morte deve ser instantânea, sem dor e sem angústia; tem o direito de viver em seu ambiente natural, terrestre, aéreo ou aquático e se reproduzir; o abandono de animal de companhia é um ato cruel e degradante; a limitação razoável da duração e da intensidade do trabalho dos animais, com uma alimentação reparadora e repouso; não submissão da experimentação médica, científica, comercial ou outra que implique sofrimento físico ou psicológico; não exploração para divertimento do homem; o ato que implique a morte desnecessária de um animal é um biocídio, um crime contra a vida e a morte provocada de um grande número de animais selvagens é um genocídio, um crime contra a espécie, aqui incluída a poluição e a destruição do ambiente natural.

A LF 9.605/98, de 12/2/1968, dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente [8] e tipifica em seu Capítulo V — Dos Crimes contra o Meio Ambiente, Seção I, os crimes contra a fauna (art. 29 a 37), entre os quais matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem permissão, licença ou autorização da autoridade competente, ou em desacordo com a obtida; praticar abuso, maus tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos [9]. O DF 6.514/08, de 22/7/2008, dispõe sobre as infrações e sanções administrativas ao meio ambiente, tipificando na Seção III — Infrações Administrativas contra o Meio Ambiente as infrações contra a fauna (Subseção I) e contra a flora (Subseção II).

Do mesmo modo, a Resolução 1.236/18, de 26/10/2018, do Conselho Federal de Medicina Veterinária define e caracteriza crueldade, abuso e maus-tratos contra animais vertebrados e dispõe sobre a conduta de médicos veterinários e zootecnistas nas diversas atividades que envolvem a criação, manejo, cuidado e uso de animais, estabelecendo o dever de manter constante atenção à ocorrência de crueldade, abuso e maus-tratos ao animais, devendo registrar a constatação ou suspeita deles no prontuário médico, parecer ou relatório e remeter tal documento imediatamente ao CRMV de sua circunscrição, que poderá notificar as autoridades competentes. A não anotação e não notificação constituem infração ética.

Ao lado da proteção contra maus tratos e crueldade, a evolução do conceito de coisas para titulares de direito decorre da constatação de que os animais são seres sencientes, o nível mais básico de consciência, ou seja, a capacidade de sentir, conscientemente, as sensações de dor, frio, conforto, desconforto, e diferenciar estados internos como bons ou ruins, agradáveis ou desagradáveis; é um conceito fundamental para as considerações do bem estar animal, pois passamos a ser responsáveis, do ponto de vista ético e moral, pelas condições em que os mantemos sob nossos cuidados, domesticados ou não [10]. Disso vem a recente alteração de propriedade (o dono) para a responsabilidade e cuidado (o tutor) que vai sendo adotada nas clínicas veterinárias, nas entidades de proteção aos animais, na imprensa e pelos responsáveis por animais domésticos ou domesticados. “Por conta dessa reflexão, de qual a função dos animais na vida das pessoas e qual a função das pessoas na vida dos animais, foram, aos poucos, ocorrendo a mudança na forma de se referir aos donos de animais como tutores; a palavra tutor acaba se encaixando melhor, já que o significado é: indivíduo que exerce uma tutela, aquele que ampara, protege guardião”, nas palavras da veterinária Renata Répeke Gomes [11]. Uma relação vertical de propriedade vai se tornando uma relação mais horizontal de cuidado e companheirismo, que se vê no crescimento de pessoas que tem apenas um animal por companhia, na referência e no tratamento a cães e gatos como “filhos” e no crescimento de demandas em que casais discutem a guarda e a visita de animais de estimação em que, mesmo sem alterar a definição legal de “coisas”, o juiz reconhece a natureza especial e a sensibilidade dos animais de companhia a ser considerada [12].

Se a todo direito corresponde um dever a todo dever corresponde um direito, a longeva legislação de proteção dos animais e do decorrente dever de cuidado dos humanos denota que nossa espécies-irmãs têm o direito ao tratamento adequado e ao bem estar correspondente. A definição e os limites desses interesses às vezes conflitante está sendo construído pela sociedade, pela lei e pelos juízes.


[1] A natureza e a personalidade jurídica (conjur.com.br)

[2] VICENTE DE PAULA ATAÍDE JÚNIOR, Princípios do Direito Animal Brasileiro, in Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFBA, vol. 30, jan-jun 2020, pág. 116.

[3] Código Civil de 1916, Título II – Da Propriedade, Capítulo III – Da Aquisição e Perda da Propriedade Móvel, Seção I – Da Ocupação: Art. 593. São coisas sem dono e sujeitas à apropriação: I – os animais bravios, enquanto entregues à sua natural liberdade; II – os mansos e domesticados que não forem assinalados, se tiverem perdido o hábito de voltar ao lugar onde costumam se recolher, salvo a hipótese do art. 596; III – os enxames de abelhas, anteriormente apropriados, se o dono da colmeia, a que pertenciam, os não reclamar imediatamente; IV – As pedras, conchas e outas substâncias minerais, vegetais ou animais arrojadas à praia pelo mar, se não apresentarem sinais de domínio anterior. Da Caça: Art. 595: Pertence ao caçador o animal por ele apreendido […].

[4] Art. 781 e seguintes, art. 1416 e seguintes.

[5] Código Civil de 2002, art. 445 § 2º (prazos de garantia por vícios ocultos na venda de animais), art. 964, IX (preferências e privilégios creditórios), art. 1313, II (o proprietário ou ocupante do imóvel é obrigado a tolerar que o vizinho entre no prédio, mediante prévio aviso, para apoderar-se de coisas suas, inclusive animais que aí se encontrem casualmente), art. 1442 a 1447 (penhor agrícola, pecuário, industrial e mercantil).

[6] DF nº 24.465/34 de 10-7-1934. O art. 3º define 31 hipóteses de maus tratos a animais, entre elas mantê-los em lugares anti-higiênicos ou que impeçam a respiração, movimento ou descanso (inciso II), obriga-los a trabalhos excessivos (inciso III), golpeá-los, feri-los ou mutilá-los (inciso IV), abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado ou deixar de trata-los (inciso V), deixar de revestir com couro ou material protetivo as correntes atreladas aos animais de tiro (inciso XIII), realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécie ou espécies diferentes (inciso XXIX). Referido decreto foi revogado pelo DF nº 11/91 de 18-1-1991, Anexo IV, mas havendo posição que defende sua vigência por, tendo força de lei, não ser passível de revogação por decreto: Direitos dos animais: dever do Estado? Parte 3 (final) | Jusbrasil

[7] Declaração Universal dos Direitos Animais – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

[8] L9605 (planalto.gov.br) ou Direitos dos animais (fiocruz.br)

[9] LF nº 9.605/98. A LF nº 14.064/20 acrescentou o § 1-A ao art. 32 com a previsão de uma pena agravada quando o abuso, maltrato, ferimento ou mutilação ocorrer em cão ou gato.

[10] O que é senciência? – consCIÊNCIA animal (unicamp.br)

[11] DONO OU TUTOR: QUAL TERMO DEVE SER EMPREGADO A QUEM POSSUI PETS? | Portal Cães e Gatos (caesegatos.com.br)

[12] L M B v. V M A, REsp nº 1.713.167-SP, STJ, 4ª Turma, 19-6-2018, Rel. Luis Felipe Salomão, maioria. A divergência no resultado e na fundamentação indicam a complexidade e a dificuldade com que tais casos são apreciados no Judiciário.

#FOCONAFONTE https://www.conjur.com.br/2024-fev-24/a-nova-visao-sobre-o-direito-animal/

 

Brave

é desembargador do TJ-SP.

 

Sobre o autor

A oposição é necessária para avaliar a gestão, mas é importante distinguir entre oposição legítima e politicagem, que busca causar problemas e confundir a população. É preciso ficar atento para não cair nesse jogo manipulador.

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