Por Vanice Valle
O Supremo Tribunal Federal veio de julgar o Tema 698 da Repercussão Geral (RE 684.612), e a tese ali fixada foi amplamente divulgada — inclusive pela corte — como uma parametrização para “decisões judiciais a respeito de políticas públicas”. O acórdão não se tem ainda publicado, mas a tese enunciada, e a maneira como ele tem sido veiculada, já permitem a formulação de comentários iniciais.
A progressiva afirmação da possibilidade do controle jurisdicional de políticas públicas — aparentemente positiva, na perspectiva de efetividade de direitos fundamentais — propôs ao Poder Judiciário uma missão que ele mesmo, frequentemente, em momentos de autocrítica, reconhece pouco instrumentalizado a atender. O problema está em que é difícil recuar, depois de uma proclamação de competência como esta. O grande desafio tem sido como construir um modelo de jurisdição que permita o desenvolvimento responsável desse controle, sem cair numa simples proclamação retórica. O Tema 698 parece ter pretendido avançar nesse desafio.
Primeiro ponto a se demarcar, diz respeito à circunstância de que a tese se enunciou a partir de uma demanda coletiva — a ação original era civil pública, manejada pelo Parquet. Esse contexto influenciou, evidentemente, a conclusão — mas gera dificuldades na oferta de uma aplicação abrangente da solução gizada na tese, como alguns pretendem sustentar.
Comecemos pelo item 1 da tese, assim enunciado: “1. A intervenção do Poder Judiciário em políticas públicas voltadas à realização de direitos fundamentais, em caso de ausência ou deficiência grave do serviço, não viola o princípio da separação dos poderes”. Uma leitura apressada pode sugerir não se tenha nesta primeira proclamação exatamente um dado novo no complexo equacionamento do tema do controle judicial de políticas públicas. Esta primeira impressão, todavia, seria equívoca. Observe-se que o que se está afirmando seja compatível com o princípio constitucional do equilíbrio e harmonia entre os poderes, é a decisão judicial que se materializa através de intervenção em políticas públicas voltadas à realização dos direitos fundamentais. Explicita-se, com o vocábulo “intervenção”, uma autorização constitucional vislumbrada pela corte, seja para desenhar originalmente um programa de ação governamental; seja para reconfigurar uma iniciativa de mesma natureza que se aponte como deficiente. A se confirmar tenha sido essa efetivamente a conclusão da corte — nem sempre a tese de repercussão geral traduz com absoluta fidelidade nuances do que foi decidido no caso concreto; ter-se-á a consolidação de um entendimento que restava ainda controverso. Afinal, ainda que restasse razoavelmente consensuada a ideia de que a jurisdição poderia determinar a proteção, na esfera individual de direitos, da projeção de direitos fundamentais consagrados pela Constituição; o mesmo não se poderia dizer da intervenção jurisdicional que se revela potencialmente substitutiva da escolha a ser empreendida pela administração.
Formulando esse tipo de afirmação em sede de repercussão geral, e no bojo de uma ação civil pública, incontestavelmente o que se quis foi afirmar que a jurisdição nesse domínio deve ter por objetivo mais do que providências pontuais, mas sim a estruturação de um programa de ação estatal apto à garantia, com maior abrangência, do direito fundamental discutido.
O temperamento do intervencionismo extremado que poderia resultar de uma interpretação ampliativa do que se veio a enunciar no item 1, se dá com o conteúdo do item 2 da tese firmado no Tema 698: “A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado”. Em que pese o avanço em se reconhecer na segunda parte do item 2 que à administração caiba a oferta do programa de ação; o enunciado suscita algumas perplexidades. Afinal, tem-se na mesma sentença, como aparente antecedente lógico, da indicação de um conteúdo recomendado à prestação jurisdicional — “apontar as finalidades a serem alcançadas”. O texto sugere, portanto, uma relação de congruência entre as finalidades, a serem fixadas pela sentença; e os planos e meios adequados à sua concretização. A indagação que se põe é como construir essa congruência na dinâmica do desenvolvimento da relação processual.
Parece claro que o apontamento das finalidades a serem alcançadas, a ser implementado pelo julgador, não deve ser uma afirmação genérica ou abstrata, sob pena de violação ao artigo 489, parágrafo 1º, II bem como 497 — este último, em especial, referindo a tutela específica. Disso resulta que do magistrado é de se exigir um conhecimento do problema público, que lhe permita formular com um mínimo grau de especificidade, as finalidades a serem alcançadas, indicando ainda qual seja a métrica admissível para a aferição do atendimento a esses mesmos objetivos. Componente ainda relevante desta parcela da condenação será a indicação de qual o período dentro do qual essas mesmas finalidades devam ser alcançadas — sem o que inexistirá parâmetro objetivo para afirmar-se o cumprimento ou não da decisão.
A enunciação do item 2, in fine — “determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado” – parece sugerir um caráter mandamental a este componente da ordem judicial. O ponto sensível, todavia, repousa em saber se o plano que venha a ser apresentado pela administração está ainda sujeito a um juízo apriorístico de aprovação ou reprovação. Afinal, as finalidades a serem alcançadas hão de ser fixadas em sentença — portanto, o processo de conhecimento já encontrou a solução do litígio (sujeita, eventualmente, a recurso). O debate apriorístico quanto à (in)aptidão do plano apresentado pela administração soaria como uma atípica liquidação de sentença. Será esse o quadro cogitado pelo Supremo Tribunal Federal?
Antecipo uma inclinação pela resposta negativa — uma vez proferida a sentença e traçadas as finalidades exigíveis da administração, a ela e somente a ela caberá a indicação de qual seja a estratégia de ação reputada mais adequada ao alcance desses mesmos objetivos. Essa parece ser a compreensão mais consentânea com uma tese de repercussão geral que tem como pano de fundo o reconhecimento de que as escolhas estratégicas de ação constituem matéria estranha à órbita de atuação do Judiciário. A matéria todavia não se teve por suficientemente elucidada no equacionamento oferecido ao Tema 698.
A enunciação da tese parece claramente comprometida com um vício de perspectiva que o Direito Processual, e os julgadores, parecem ter dificuldade de superar, a saber; valorizar a execução de sentença — afinal, é neste momento da relação processual que se efetivará a alteração no mundo da vida que a prestação jurisdicional pretendeu oferecer.
O universo das políticas públicas é fortemente caracterizado pela dinâmica que lhe é própria. Assim, desde a identificação do problema público; passando pela exploração das alternativas de seu tratamento, tem-se a possibilidade de alteração relevante nas condições que determinaram e sobre as quais incidirá a política pública. Disso se extrai que o quadro sobre o qual incidirá a ordem judicial não comporta a estabilização que é tão cara ao Direito Processual. Nestes termos, o item 2 da tese parece ainda operar a partir de uma premissa de estabilidade que pode se revelar irreal.
No campo, por exemplo, das finalidades a serem enunciadas pela sentença; ainda que o objetivo em si possa ser razoavelmente assentado, os indicadores de seu atendimento como volume de pessoas alcançadas, e ainda tempo necessário à maturação da ação pública podem mudar. Suponhamos uma demanda onde se discuta acesso a creche. O macro objetivo é estável — assegurar o acesso ao direito constitucionalmente previsto à creche — mas o número de vagas a serem disponibilizadas, e o interstício de tempo em que isso deve se verificar não é necessariamente estável. A questão que se porá então diz respeito à incorporação dessa dinâmica, em algo que no Direito Processual, é classicamente sujeito à estática — a saber, a coisa julgada. Claro, a resposta que o Direito Processual oferece às relações sujeitas a dinâmica, é o reconhecimento do caráter rebus sic stantibus da decisão judicial — mas como essa solução se aplicaria no universo do controle de políticas públicas? Haverá a necessidade de propositura de nova demanda para o realinhamento das finalidades desenhadas na sentença original? A mudança de condições se informa no curso da mesma demanda, com a reconfiguração das finalidades originalmente fixadas?
Outro vetor da solução fixada no Tema 698 é a imperativa apresentação — e execução, naturalmente —, pela administração, do plano e/ou meios necessários ao alcance da finalidade pretendida pela decisão judicial. Aqui igualmente se tem o problema da incidência do dinamismo que é próprio ao universo das políticas públicas. A velha lógica aparentemente linear sugerida pelo ciclo das políticas públicas — segundo a qual, depois da formulação, tem-se a simples implementação e avaliação — é de há muito reconhecida como mero instrumento pedagógico. Afinal, é sabido que é no plano da implementação que se terá o teste último e real da adequação da resposta ao problema público traçada na etapa da formulação da política pública. Não será incomum que o plano original de ação tenha seu aprendizado na fase de implementação, que sugerirá por sua vez ajustes no desenho inicial. Como esse tipo de calibragem, que é comum no universo das políticas públicas, se dará no modelo enunciado pelo STF? As alterações ao plano de ação apresentados em cumprimento da sentença, sugeridas pela implementação em curso, devem ser novamente informadas ao juízo? Estão sujeitas a algum tipo de valoração — além do atendimento, ao final do interstício fixado na sentença, das finalidades nela igualmente tratadas?
Finalmente, mas não menos importante, tem-se o problema do convívio entre esse tipo de intervenção jurisdicional estruturante, e aquelas que se verifiquem no micro; no plano de provimentos individuais. Duas são as razões que me levam à advertência. Primeiro, como assinalada no início do presente ensaio, a tese foi fixada em sede de ação coletiva, e só a elas terá aplicação. Evidentemente seria descabido pretender que no curso de demanda individual, sujeita aos limites subjetivos clássicos, a Administração fosse chamada à elaboração de plano geral de ação. Disso decorre que é previsível a coexistência do plano traçado pela administração, e de provimentos individuais que se revelem eventualmente incompatíveis com delimitado na ação coletiva. Ainda no exemplo da creche, se o plano apresentado pela administração compreende a incorporação gradual no sistema, de crianças segundo faixa etária; uma decisão individual que determine a matrícula de criança em idade ainda não compreendida no plano de ação, compromete a sua implementação. Nem se diga que uma única decisão individual não tenha esse condão. O fato é que no campo da proteção a direitos fundamentais, especialmente os de cariz socioeconômicos, a judicialização dificilmente se dá em escala tão diminuta que se mostre irrelevante à execução do plano de ação submetido em atenção à tese fixada no Tema 698.
Como se dará então a relação entre demandas individuais e coletivas, onde se esteja buscando o desenho de uma política pública efetiva? A tese, nos termos em que está posta, não funcionará como mais um desincentivo ao manejo da ação coletiva? Afinal, no manejo da demanda individual, o pedido versará sobre a solução pontual já delimitada — matrícula imediata no sistema de creches. Na demanda coletiva, o que se pode obter é a delimitação de um plano de ação que pode requerer um determinado tempo até a geração do resultado pretendido.
Não se está com essas considerações, a negar qualquer utilidade aos termos da tese fixada no Tema 698. Tem-se em alguns aspectos, avanços — mas ela está longe de empreender a um equacionamento já operacional do controle judicial de políticas públicas. O magistrado que tenha em seu escaninho eletrônico uma ação civil pública para sentença hoje, tem uma série de questões irresolvidas. Levanta-las é um importante exercício para prosseguir no desenvolvimento de critérios que possam subsidiar novos avanços no tormentoso tema do controle judicial de políticas públicas.
Uma última observação é de se fazer. A pretensão de uma solução única, totalizante, é uma simplificação. A gestão de políticas públicas é atividade fortemente influenciada pelo contexto em que a atividade da administração se desenvolve — e este não é o mesmo, na saúde e no desenvolvimento tecnológico. Problemas públicos são complexos, e por isso não se harmonizam com soluções simplificadoras.
#ÉFOCONAFONTE : https://www.conjur.com.br/2023-jul-20/interesse-publico-stf-lacrou-controle-politicas-publicas-julgar-tema-698