Quo vadis, guarda municipal?
A indagação latina (“quo vadis”) é assertiva, sem rodeios. De Ribeirão Preto a Campinas assim como outras centenas de cidades Brasil afora, o que se vê é o uso desmedido e ao arrepio da legalidade na gestão do laborioso serviço das guardas municipais.
A Constituição registra que a “segurança pública é um dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, no caput do artigo 144. Já no §8º, cuida da guarda-municipal, dizendo que “os municípios poderão constituir guardas municipais, destinados à proteção de seus bens, serviços e instalações”.
A desigualdade de tratamentos dos problemas societários do povo brasileiro muita das vezes nasce da forma como o constituinte organizou a disposição do texto constitucional. É que a defesa da segurança pública na Carta Política vem antes do compromisso sócio-educacional na constituição. Eis o eterno embate entre liberdade x igualdade, no caso brasileiro, não resolvemos nem um, nem outro.
Outra observação do texto constitucional é que a Constituição fala em “poder”, não em dever. Cabe ao gestor público local decidir pela criação (ou não) da guarda municipal.
Nas lides diárias, notícias pululam aqui e acolá, e, muitas delas, o que constatamos é um desvio de finalidade da competência das guardas municipais ante a disposição constitucional. A tutela jurídico-política reservada aos fazeres das guardas é a proteção do patrimônio público (bens, serviços e instalações, §8º, 144), não de pessoas, propriamente dito; a estas, a constituição delegou à polícia militar — preventivo-repressivo — e à polícia civil (idem, federal) – investigativo. As guardas municipais (doravante, polícia municipal) não estão inseridas no rol taxativo dos órgãos de segurança pública (artigo 144, CRFB/88), por quê?
O escritor franco-argelino, Albert Camus in “reflexões sobre a guilhotina” disse algo que convém nós grifarmos; segundo ele, “em nossa ‘politicamente correta/bem policiada’ sociedade, reconhecemos que uma doença é séria do fato de não ousarmos falar diretamente dela”. Precisamos falar sobre polícia/segurança municipal!
Valho-me de Camus pra corroborar nosso compromisso ético-político com os acontecimentos na e para com à cidade. Podemos aferir a qualidade de nossa democracia/cidadania a partir de como tratamos os temas sensíveis na e para com seus citadinos. Falo de cidadania aqui como o direito a ter direitos, não exclusivamente a ser coparticipe dos acontecimentos nas cidades, mas sim, de ter assegurado um mínimo de direitos para garantia do mínimo existencial. Cidadania é o direito que todo citadino tem na e para com à cidade. O “para com” merece um texto à parte. Outro dia, quem sabe.
Do ensino dos pais da democracia vemos que a polis (grega) criou a política e esta pariu a polícia para controle/fiscalização da política. Neste particular, leia-se “polícia municipal” como sinônimo daquilo que a CRFB/88 (Constituição da República Federativa do Brasil) denomina como “guardas municipais” no §8º, do artigo 144.
Ao chegar a Roma, Luís Falcão (Schwars e Starling, 2019, p. 270) fala que “o conceito de cidadania passa a ser elaborado a partir da linguagem dos direitos (iure), e, com a participação dos cidadãos se torna hierarquizados de acordo com a posição social de cada um”.
Com a evolução do constitucionalismo liberal nas democracias modernas, cidadania passa a receber uma conotação mais voltada a coparticipação dos citadinos nas decisões das polis.
Dentro dos poderes de tutela dos bens públicos que cabe a guarda municipal exercer, o principal deles como força instrumental do Estado é fazer valer o império da lei.
Dito isso, o alerta do argelino Camus trilha no sentido de trazer ao debate os temas candentes do tempo atual, ainda que espinhoso.
E quem advoga por mais segurança deve-se ater aos meios de efetivá-la(s), em primeiro lugar. A segurança dos direitos dos cidadãos não teria primazia ante a vacuidade das expressões “incolumidade” e “ordem pública” que encontramos na jurisprudência dos tribunais para chancelar operações das guardas municipais?
A carta política é prenhe de compromissos sociais, e é louvável que assim seja. É um texto que nasceu do medo, do medo do retorno à ditadura civil-militar (1964-1985).
Também não podemos ignorar a presença dos 23 senadores biônicos — espectros da ditadura — que participaram dos trabalhos constituinte. Todo esse clima espraiou sobre e sob o texto, impelindo os opositores da ditadura a lutar por maior constitucionalização de direitos. Se constitucionalizando já vivenciamos uma série de negações de direitos ante o baixo déficit de cidadania de quem governa, quiçá se não tivéssemos escriturados?
Afinal, o que estamos falando senão em cautela na aplicação do Estatuto das Guardas Municipais, Lei nº 13.022/2014, pelos municípios? Segundo disposição constitucional, patrulhamento preventivo, repressão ao crime e investigação, não são escopo das guardas municipais.
Não se ignora que segundo o artigo 308 do CPP, qualquer um do povo e as autoridades devem efetuar prisão em flagrante, nesse ponto, estando em curso, cabe a guarda municipal dar cabo a ação criminosa. Outra coisa totalmente diversa são os casos de prisão decorrente de operações espetaculosas — inclusive com cães — da guarda municipal em diligências contra o tráfico de drogas que desaguam no Judiciário. No primeiro é dever dela agir, no segundo, não cabe a ela engendrar ações com o fito de avocar poderes da polícia militar, quando não da polícia judiciária.
Ademais, insta perguntar se instrumentalizar à polícia (guarda) municipal para combater o crime seria a solução das mazelas que grassam nossa sociedade?
Feito essas observações, acorro-me à pena do filósofo Estagirita, que, com sua rebeldia — em relação à filosofia de seu mestre idealista, Platão — cravou: “Conhecer verdadeiramente é conhecer as causas”. E Aristóteles não está só nessa empreitada, Karl Marx pede passagem!
Já nos tempos da revolução industrial exsurge outra máxima, que, se conjugada com a do grego, nos serve de bússola. Karl Marx além de outros dons, era um exímio frasista.
Não quero aqui aprofundar a respeito do ser-frasista. É um dom que demanda muito labor literário, além de uma dose vocação profética para sentir os anseios do povo ao fazer convergir numa frase/síntese um problema complexo.
Foi o alemão quem disse que “ser radical é ir à raiz do problema”. É nesse sentido que acorro-me à pena de Camus pra tocar na ferida na busca de produzir o melhor diagnóstico. Sem um diagnóstico correto/profundo como o médico poderá fornecer um prognóstico?
Os dilemas do tempo presente demandam conhecimento multiforme, interseccional e plural dos gestores públicos, muitos destes, estacionados no tempo analógico.
E não por acaso que as lentes do sociólogo espanhol, Manuel Castells (Ruptura, 2018, p. 29), identificou isso nas sucessivas campanhas de “ruptura institucional” que trespassa na europa, assim como no continente africano, no oriente e na américa latina. Castells sentenciou: “O medo é a mais poderosa das emoções humanas”.
Não podemos cair no engodo retórico da vulgata punitivista. Quem nos livrará da bondade dos pseudo bons samaritanos? Dessa gente que faz sinal da cruz com o coldre carregado?
Ora, basta uma passagem rápida por algumas plataformas da imprensa pra depararmos com sugestões prêt-à-porter, da profundidade de um queijo suíço.
Os truques de retórica não estão isentos da crítica, tampouco cobertos pelo mantra da infalibilidade do dogma papal. A revolução (liberal) francesa pôs nossos ídolos sob nossos pés. Sob o tablado da democracia cidadã, é preciso trazer ao debate os fatos evidentes, assim como as raízes subjacentes, do contrário, far-se-á dos fatos um continuum espetáculo circense (por todos, Guy Debord), dando azo a penetração e aderência hostil dos defensores da dicotomia que pregam pela salvação sem indicar os caminhos.
Quero ir mais a fundo antes de concluir, para tanto, valho-me do evangelista João, autor do 4º evangelho. Alguns nominam esse evangelho como o “evangelho do caminho”.
É que no grego do texto bíblico a expressão é hodos. Caminho; curso de conduta; forma. Percebam que no original a palavra não indica apenas um fim e sim também o meio que se deve perquirir para o alcance de determinada empreitada.
Mais importante que a decisão-final é a forma com a qual iremos chegar a resolução. Como visto, aumentar a guarnição da guarda municipal não irá solucionar o problema da crescente criminalidade.
A crescente criminalidade deriva de um complexo de fatores, sem uma abordagem interseccional séria, toda e qualquer análise é vazia de sentido. Deve-se levar em conta a crescente desindustrialização do país; a precarização do trabalho e da renda; as sucessivas reformas da previdência que tem subtraído cada vez mais o direito social à aposentadoria; a crescente elevação dos juros (crédito) ao pequeno e médio empreendedor; está provado historicamente que nenhum país cresceu e se desenvolveu sem uma política de industrialização (Mazzucato, 2016), nesse sentido, enquanto o Brasil continuar caudatário do atraso, o que esperar de novo?
Ora, os problemas das cidades são muitos, a segurança pública é um deles. Outro, é que e toda e qualquer política de segurança pública deve prestar tributo a segurança dos direitos fundamentais. É o respeito aos direitos fundamentais que legitima a ação do Estado (Abboud, 2020, p. 858 e ss.).
De nossa parte, particularmente nutro o hábito de perquirir as entranhas da nossa língua portuguesa, anoto que o sufixo “ança” recebeu uma carga substantiva diferenciada; cri-ança, mud-ança, esper-ança, são apenas alguns dos muitos substantivos potencializados pelo acréscimo do sufixo “ança” que a língua portuguesa nos concede. Ao invés de buscar seguro, que é algo precificável pelo mercado — como um mantra, um “fetiche da mercadoria” na linguagem marxiana —, busca-se um plus, que é segurança. A segurança quando é eficaz e eficiente tende evitar o uso da reparação do dano que é o seguro.
Voltando ao foco das guardas municipais, convém trazer aos leitores/as a seguinte observação:
É sabido que foi a presidente Dilma Rousseff quem promulgou o Estatuto das Guardas Municipais, Lei nº 13.022, de 08 de agosto de 2014, projeto de autoria do deputado federal, Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP); a entrada da lei no cenário nacional calhou de ser na época que a presidente Dilma carecia de sustentação política e, após ser reeleita num duro embate com o candidato Aécio Neves (PSDB-MG), este prometeu — e logrou êxito — dispender todo ardil pra derribá-la.
Se Aécio Neves não tivesse ajambrado nos porões da república com Michel Temer e Eduardo Cunha, qual era a probabilidade da presidente Dilma Rousseff promulgar o Estatuto das Guardas Municipais nos moldes que foi publicado abrindo as portas para muitos municípios criarem estatutos municipais, vide Ribeirão Preto (SP), que criou a “patrulha Maria da Penha” [1]? Não era Eduardo Cunha quem presidia à Câmara, determinando o que entrava ou não na pauta da Casa de Leis?
Na nossa opinião, Dilma tentou conciliar a demanda oriunda das municipalidades com a promulgação do r. estatuto, em troca, esperava obter apoio político para sustentação no cargo — que não veio. Nesse caso, talvez nossa presidente não tenha observado o conselho dado pelo cubano José Martí: “En la política, lo real es lo que no se ve“.
Não obstante as questiúnculas políticas, importa é avaliar a constitucionalidade ou não do Estatuto das Guardas Municipais (lei federal) à luz do §8º, do artigo 144, da CRFB/88. O encontro marcado será quando o Supremo julgar o Recurso Extraordinário nº 608.588/SP, com repercussão geral reconhecida pelo ministro Luiz Fux, no j. 23/5/2013. Sugestão de tese a ser encarada: é constitucional às guardas municipais exercer policiamento típico de política judiciária em ações de combate às drogas? É constitucional às guardas municipais promover ações típicas da polícia militar preventivo-repressivo para tutelar pessoas preterindo a segurança patrimonial dos bens públicos conforme previsto no §8º, do artigo 144, do Estatuto Fundamental da República? A demanda decorre de questionamento acerca do Estatuto da Guarda Civil Metropolitana de SP, capital, Lei nº 13.866/2004. Por força da similitude com a norma federal, irradiar-se-á o entendimento acerca da matéria a fim de garantir segurança jurídica.
Hipoteticamente, imaginemos que o Supremo valide a interpretação reconhecendo poder de patrulhamento e investigação às polícias municipais, chancelando as denúncias que temos reportados neste texto, pergunto: qual a possibilidade de amanhã ou depois políticos não sermos tragados pela sanha persecutória de políticos de regiões longínquas usarem do aparato de segurança sob sua mão para perseguir opositores?
Lembremos que o Brasil não é só um país, é um continente, considerando as extensões geográficas do nosso território. Não podemos ignorar a possibilidade de ocorrer um “cavalo de troia” eleitoral em regiões longínquas e/ou de difícil acesso.
A questão já poderia ter sido sanada quando entrou na pauta (ADI nº 5.156/DF) do Supremo em 2020, por força de questões técnicas (processuais), não ocorreu.
A constituição delegou à polícia (guarda) municipal a competência para zeladoria e proteção dos bens públicos, o que explica esse alargamento de competências às guardas municipais que muitos municípios têm praticado? Alguns chegam publicizar atuações da polícia municipal [2] [3] com cães [4] farejadores a procura de substâncias ilícitas (Lei de Drogas, 11.343/2006), outros atribuem função de patrulhamento preventivo-repressivo; a lista é uma crescente. O homo faber legislativo é mesmo criativo.
Quero encaminhar pro final, não sem antes registrar o alerta do geógrafo Milton Santos: “(…) quando se buscam soluções não estruturais, o resultado é a geração de mais crise”.
Pra terminar, na nossa humilde opinião técnica, a tendência é que o Supremo siga sua jurisprudência (idem, STJ, HC 667.461 e 1.854.065) no sentido de irreconhecer poder de polícia para patrulhamento preventivo-repressivo às guardas municipais nos moldes do que está ocorrendo em muitos municípios, em operações de drogas, patrulha Maria da Penha entre outros. E assim fará conforme entendimento firmado no julgamento do ARE 1.215.727/SP com repercussão geral, de relatoria do ministro Dias Toffoli, onde não foi reconhecido direito à aposentadoria especial aos agentes das guardas municipais. Um tema deságua noutro!
Caso o STF chegue noutro entendimento, caberá aos membros das guardas municipais que aqui chamamos de polícia municipal, provocar o Judiciário em busca do direito à aposentadoria especial ante a periculosidade do mister desempenhado.
É preciso debater o futuro das guardas municipais no Brasil, sob pena de sermos omisso diante do desvirtuamento de finalidades que muito gestor público tem promovido em suas guardas.
FOCONAFONTE-https://www.conjur.com.br/2022-mai-22/lucas-pereira-policia-municipal-cidadania-debate