O populismo penal não passa impunemente. Para além de uns punhados de “criminosos perfeitos” condenados na imprensa, nas redes sociais e pelos próprios tribunais, há mais gente punida nessa história: a própria sociedade, que suporta os custos da burocracia envolvida na investigação, acusação, punição e cumprimento das penas — muitas delas desproporcionais ou irracionais. Uma das vertentes desse recrudescimento punitivo é justificada por uma causa inicialmente nobre: a defesa dos animais — que, aos poucos, vão ganhando status parecido com o de seres humanos.
Um dos exemplos mais recentes ocorreu em Belo Horizonte, onde foi inaugurado, no ano passado, o primeiro Instituto Médico Veterinário Legal do país. Sua principal função é auxiliar as autoridades competentes na investigação de casos de maus-tratos contra animais, com a elaboração de exames de corpo de delito e laudos de autópsia, a exemplo do que ocorre quando as vítimas são humanas.
Foi também em Minas Gerais que surgiu um episódio emblemático de populismo penal na seara dos “direitos dos não-humanos”. Em julho de 2020, gerou comoção nacional o caso do pitbull Sansão, cujas patas traseiras foram decepadas, em Confins, região metropolitana de Belo Horizonte. Não tardou e a resposta legislativa veio em forma de trocadilho involuntário: aumento de sanção a agressores. Como se um potencial torturador de pets morasse dentro de cada um de nós — ou, mais provável, de nossos vizinhos.
O aumento da pena está previsto no parágrafo 1º-A do artigo 32 da Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/98). O novo dispositivo foi acrescentado em setembro de 2020, por meio daquela que ficou conhecida como “Lei Sansão” (Lei 14.064/20). Ele prevê reclusão de dois a cinco anos a quem “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar”, especificamente, cães ou gatos. Antes, a pena era a prevista no caput no artigo 32, que não distingue o tipo de animal atacado: detenção de três meses a um ano, além de multa.
Na cerimônia em que o presidente Jair Bolsonaro fez a sanção da lei, o deputado federal Fred Costa (Patriota-MG), autor do projeto, chamou os animais de “anjos” e se referiu a eles como “um grupo que não tem voz, não tem título de eleitor”. “Quem não demonstra amor por um cão não pode demonstrar amor por quase nada nessa vida”, acrescentou Bolsonaro.
Não faltaram críticas à nova lei, quase sempre acompanhadas da ressalva de que não se desmerece a proteção aos animas, mas apenas se contesta a maneira como ela é politicamente tentada.
Em artigo publicado na ConJur, o mestre em Ciências Penais e doutor em Direito Constitucional Grégore Moreira de Moura afirmou que o aumento exponencial da pena não é legítimo, proporcional e adequado. E tocou na ferida: “No ambiente de modernidade líquida (Bauman) em que vivemos, parece haver um ‘empoderamento’ dos animais, como forma de suprir depressões, solidões e outros problemas causados pelo esfacelamento das relações humanas. Tal fato gera um problema axiológico, pois o animal passa a ser visto como um ser superior ao humano”.
Esse “problema axiológico”, de valores, é nítido no caso Sansão: a pena máxima de cinco anos de reclusão é a mesma para quem cometer maus-tratos contra cachorros e gatos e para quem incorrer em lesão corporal grave que deixa um ser humano com debilidade permanente de membro, sentido ou função. E a pena mínima no caso do crime contra humanos é até menor: um ano (são dois, no caso de maus-tratos contra os bichanos).
Outras comparações mostrariam o casuísmo populista, com piscadelas à plateia eleitoral, da Lei Sansão. O delito de maus-tratos contra humanos (artigo 136 do Código Penal), por exemplo, prevê detenção (e não reclusão) de dois meses a um ano. Ou multa. Se da conduta resultar uma lesão corporal grave, a pena prevista é de reclusão de um a quatro anos… Mas Bolsonaro, na cerimônia de sanção da nova lei, deu uma sugestão: agora é só aumentar a pena de quem pratica atos semelhantes contra seres humanos.
Não molestem as baleias
Um caso já clássico nas aulas de Direito Penal é o crime de molestamento de cetáceos, previsto pela Lei 7.643/87. Segundo o artigo 2º do diploma, é “proibida a pesca, ou qualquer forma de molestamento intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras”. A pena estipulada é de dois a cinco anos de reclusão, além de multa.
A lei foi aprovada em um momento de grande comoção da opinião pública em relação à preservação das baleias. Mais uma vez, uma causa nobre. O projeto de lei foi apresentado pelo então deputado federal Gastoni Righi. Originalmente, o texto proibia e criminalizava a pesca desses mamíferos marinhos. Mas Darcy Passos, outro deputado, apresentou uma emenda ao projeto, incluindo o trecho “ou qualquer forma de molestamento intencional”.
Reza a lenda que a alteração foi feita porque, à época, uma baleia havia encalhado em uma famosa praia carioca. Mas, enquanto ambientalistas tentavam conduzi-la de volta ao mar, uma criança teria colocado um palito de sorvete no espiráculo do animal — orifício por onde as baleias respiram. O cetáceo teria morrido por causa disso, causando grande comoção.
A resposta legislativa, novamente, não passou impunemente. Certa vez, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região teve que decidir se um homem que filmou baleias francas na costa catarinense era um franco criminoso. Segundo a denúncia, a proximidade dele com os animais teria alterado a rotina daqueles cetáceos. A absolvição veio apenas em embargos infringentes. Ou seja, a 7ª turma da corte havia dado provimento à apelação criminal do Ministério Público. Como a decisão não foi unânime, o cinegrafista de baleias pôde recorrer, prevalecendo ao final, então, o voto divergente.
Por trás de casos como esse, para além da presunção de que o rigor penal é a panaceia para criar uma sociedade na qual não haveria a prática de condutas moralmente reprováveis, está o funcionamento quase automático de uma cara e inconsequente máquina estatal. No caso do Ministério Público e de alguns de seus xerifes concursados, seria a função de um “despachante criminal”, como definiu o ministro do Superior Tribunal de Justiça Rogerio Schietti.
No afã de um mundo são, com todo Sansão saltitante como em propaganda de margarina e com toda sanção aos desafortunados que ousarem romper o script, a comunidade política se revela doente.
Outros ramos
A ascensão de animais ao status jurídico de humanos não ocorre apenas na área criminal. O Direito de Família é outro ramo no qual a novidade tem grassado. No ano passado, uma decisão da Justiça mineira entendeu que um coelho se encaixa no conceito de família multiespécie, que abrange humanos em convivência compartilhada com seus animais de estimação. Para isso, basta demonstrar um convívio duradouro e um laço de amor e afeto entre o pet e demais membros da família. Assim, foi concedida liminar a uma consumidora para que ela pudesse viajar de avião, na cabine, com o coelho Blu.
Em outro caso, a 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento, por unanimidade, ao recurso de uma mulher que pleiteou o pagamento de “pensão”, pelo ex-marido, aos bichos de estimação, que com ela ficaram. O colegiado condenou o homem a pagar por mês 15% do salário mínimo (R$ 165) a cinco cães e um gato.
Segundo a decisão, animais de estimação são desprovidos de personalidade jurídica, não sendo cabível receber pensão alimentícia em decorrência do divórcio de seus tutores. No entanto, entendeu que é plausível a fixação de auxílio financeiro aos pets adquiridos na constância do casamento celebrado sob o regime de comunhão parcial de bens.
Personalidade jurídica
Em outro caso — falando em personalidade jurídica de animais —, um ativista propôs, em nome de um cachorro, uma ação de indenização por danos morais. A petição foi assinada com a pata da vítima, o cão Beethoven, que sofreu um tiro no olho. Mas não passou de jogada de marketing. O juiz indeferiu o pedido, pois o advogado não alterou o polo ativo da demanda. Ele — e o cão — recorreram ao Tribunal de Justiça do Ceará.
A discussão sobre personalidade jurídica de animais e de outros entes da natureza, como rios, lagos e florestas não é exatamente nova e tem ganhado destaque na América Latina, principalmente por causa da Constituição do Equador, que, em 2008, passou a elevar a natureza a sujeito de direitos. No Brasil, após as tragédias ambientais de Mariana (MG), houve a propositura de uma ação civil pública em nome do Rio Doce. E uma decisão do STJ, de 2019, atribuiu “dignidade e direitos aos animais não-humanos e à Natureza”.
“Nobre causa”
Em mais um caso de cruzada moral contra agressores de animais — ou supostos agressores —, um juiz da comarca de Poá (SP) teve que se debruçar sobre um caso de uma vereadora que havia sequestrado o shih-tzu de uma senhora. O motivo: a parlamentar teria recebido uma denúncia anônima sobre maus-tratos e, achando-se investida de autoridade, apreendeu o bichano. Em juízo, a dona do cão, uma mulher de 74 anos, alegou que o pretexto da nobre causa animal não dá direito a ninguém de despojar bem alheio à revelia da lei e das normas aplicáveis. Ao analisar o caso, o magistrado apontou que as oitivas feitas apontam que o animal estava apenas com pelos longos e indícios de ausência de asseio. Por isso, determinou sua devolução.
Cofres de Brasília
O preço da nobre causa animal também está sendo pago pelo erário do Distrito Federal, onde fiscais do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos do DF (Ibram) entenderam que um criador de pássaros havia descumprido norma ambiental, levando à apreensão de dois passarinhos, que foram soltos na natureza pelos agentes. O criador entrou na Justiça e receberá R$ 90 mil.
Segundo os autos, o Ibram fez uma fiscalização em imóvel do criador, onde deveriam estar todas as aves de seu plantel. Mas duas não foram encontradas. Os pássaros, da espécie bicudo-verdadeiro e nascidas no cativeiro do criador, foram localizados dias depois, em outro imóvel, onde estavam para fins de procriação. No entanto, a guia de transporte dos animais — documento que autoriza que eles permaneçam em local diferente do cadastrado — estava vencida em três dias, o que motivou os fiscais a apreender as aves, como se estas fossem crianças viajando sem a autorização de seus responsáveis.
O TJ-DF entendeu que a expiração, em três dias, das guias de transporte era “mera irregularidade”, algo que poderia ser facilmente sanado, de modo que sanções menos gravosas poderiam ter sido aplicadas.
sanções menos gravosas poderiam ter sido aplicadas.
#focnafonte:https://www.conjur.com.br/2022-jan-30/bh-inaugura-instituto-corpo-delito-autopsia-animais