Criminalista explica que membros do governo anterior que não impediram extermínio indígena também devem ser processados
O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou a investigação de integrantes do governo Jair Bolsonaro (PL) por supostos crimes de genocídio contra os índios yanomamis, em Roraima. A Polícia Federal também já estava investigando diversos crimes contra os indígenas, ocorridos nos últimos anos, a partir da explosão da invasão do garimpo na área, que é demarcada e pertence à União. Um terceiro inquérito, do Ministério Público Federal (MPF), apura a responsabilidade de servidores da Funai, Ministério da Saúde e até mesmo do ex-presidente pela crise humanitária. O ministro da Justiça, Flávio Dino, disse à imprensa ver indícios de crime de genocídio.
Na avaliação da jurista e mestre em Direito Penal Jacqueline Valles, insistir na tese de crime de genocídio pode ter efeito contrário, e provocar a impunidade dos culpados. “Entendo a comoção social e a pressão da opinião pública, mas o crime de genocídio é extremamente difícil de provar, porque é preciso apresentar evidências claras do dolo, ou seja, da intenção dos réus de exterminar determinado grupo, como prevê a Lei 2.889/1956. E se isso não ficar cabalmente comprovado, a Justiça pode se ver obrigada a absolver os processados”, explica.
Força Aérea Brasileira atua na crise humanitária em Roraima
Definição de genocídio
O genocídio é tipificado pela Lei 2.889/1956, que prevê punição a quem matar, causar lesão grave, submeter a condições de existência capazes de ocasionar destruição, ainda que parcialmente, com a intenção de destruir determinado grupo nacional, étnico, racial ou religioso. “Vale lembrar que tanto os crimes de homicídio quanto de genocídio são punidos com prisão de até 30 anos”, completa a criminalista.
Falta de domínio do fato
Como os investigados não executaram tarefas que, de forma direta, provocaram as mortes dos indígenas, a imputação de genocídio pode dar uma brecha aos advogados de defesa. “Eles podem argumentar a chamada “Teoria do domínio do fato”, pela qual um ocupante de cargo de liderança pode ser condenado pelo crime de subordinados. O problema é que, entre as altas autoridades, é incomum o contato de ministros com servidores de quinto ou até sexto escalão, que executam diretamente a tarefa de cuidar do território. A alegação de um ministro de que desconhecia uma prática criminosa que ocorria na outra ponta do serviço público costuma ser aceita pelos tribunais. E isso inclui o presidente da República”, observa Jacqueline.
Não à toa, o Brasil só registra um caso de condenação por genocídio: a do massacre de Haximu, em Roraima, em 1993. Um grupo de cinco garimpeiros ilegais foi condenado pela morte de 16 indígenas, entre eles dois idosos, quatro crianças e um bebê, além de incendiar a aldeia. As vítimas foram mortas a tiros e facadas.
A jurista e mestre em Direito Penal Jacqueline Valles
Homicídio por omissão
A advogada criminalista reforça que trocar a denúncia de genocídio por homicídio por omissão, amparado pelo artigo 13 do Código Penal, tem mais chance de garantir que os culpados cumpram pena. “Diante do noticiário nacional, que já estampava em manchetes a dramática situação dos yanomamis desde 2020, e da quantidade de documentos que comprovam os pedidos oficiais de socorro, é mais difícil alegar desconhecimento do sofrimento dessa população. Além do mais, essas autoridades são obrigadas pela Constituição a proteger os povos originários e seus territórios. Por isso, seriam centenas de denúncias de homicídio por omissão e centenas de casos de lesão corporal, que podem levar a penas que ultrapassem, em muito, os 50 de anos de prisão. Esse conjunto pode levar, de fato, a 40 anos de cumprimento de pena, o máximo permitido pela lei brasileira. O artigo 13 do Código Penal é aplicado nesses casos porque estabelece que a omissão é penalmente relevante quando o agente devia e podia agir para evitar o resultado”, comenta.