Por Derly Barreto e Silva Filho
“O deputado ou senador, que aceitar o cargo de ministro de Estado, perderá o mandato, e proceder-se-á imediatamente a nova eleição, na qual não poderá ser votado.”
Há 131 anos, os primeiros constituintes republicanos já haviam pensado na solução de casos como os de deputados ou senadores investidos em cargos de ministro de Estado acusados de corrupção e de fraudar o andamento dos trabalhos legislativos, para alterar o resultado de deliberações em favor do governo.
O parágrafo único do artigo 50 da Constituição de 1891, ao decretar a perda do mandato de deputado ou senador que aceitasse ser ministro, proibindo-o, ainda, de disputar nova eleição para a vaga[1], procurava ser fiel à máxima liberal da separação dos poderes, segundo a qual as clássicas funções do Estado devem ser divididas e entregues a órgãos especializados, de tal forma que, pela atuação de um, não haja cometimento de abusos por parte de outros. Para que não se possa abusar do poder — recomendava Montesquieu[2] — é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. Portanto, o Legislativo devia ser funcionalmente independente, isto é, livre de ordens e influências externas sobre a ação de seus membros. Do contrário, não conteria os desmandos dos outros Poderes.
Para o legislador constitucional do século 19, a investidura de congressista no cargo de ministro rompia o almejado equilíbrio entre os Poderes e representava uma perigosa interferência no desempenho autônomo da atividade legislativa e da função parlamentar de controle dos atos do Executivo.
Em seus comentários de 1902 à Carta de 1891 — que, com as devidas adaptações, bem ilustram a história brasileira recente —, João Barbalho Uchoa Cavalcanti[3], constituinte de 1890 e ministro do STF entre 1897 e 1906, explicou a razão de ser do disciplinamento da matéria: “A Constituição fez os ministros agentes da confiança do presidente da República”. “Com isto conservou-se fiel ao regime por ela preferido e poupou ao país do degradante espetáculo da candidatura ministerial, que punha em jogo todos os recursos oficiais, todos os meios possíveis de utilização no momento, pressão, fraude, corrupção, para a reeleição dos ministros.” “Para que a nação consultada respondesse com franqueza e isenção se o ministro continuava a merecer sua confiança, mais alguns batalhões de guarda nacional se criavam; porção de patentes se expediam; era preciso que houvesse mais coronéis, capitães, etc., d’essa milícia; questões encalhadas na administração prontamente se revolviam ao sabor dos interesses do momento; demissões de certos cargos se davam para acomodar nas vagas os recomendados dos chefes políticos; comissões, contratos, prorrogações de prazos d’estes, despesas secretas e um sem número de favores se empregavam” [4].
A Constituição de 1988, ao prescrever que não perderá o mandato o deputado ou senador investido no cargo de ministro de Estado ou secretário, despreza a história e suas lições e relativiza a regra da inacumulabilidade, inerente à separação dos poderes e fundamento do sistema presidencialista de governo, que impede a concentração de poderes em um mesmo ente, a fim de que não derrua a independência entre os órgãos legislativo, executivo e judiciário e não seja colocada em risco a respectiva separação funcional[5].
Para Karl Loewenstein[6], a previsão da incompatibilidade tem uma importância fundamental para a independência funcional do Parlamento e consiste em um meio para afastar a influência governamental sobre os seus membros. Pontes de Miranda[7] segue o mesmo entendimento: ““em vez de se prestigiar o povo, através do Parlamento, ou do Congresso Nacional, abriu-se brecha na independência do Poder Legislativo: “Vós não podeis governar”, diz o presidente da República, ‘mas aos que me queiram servir, como ajudantes, eu tirarei daí, e lhes proporcionarei oportunidade de comando governamental, o que vos permitirá torcer o Congresso Nacional'”. E continua: “Diminuiu-se, profundamente, a responsabilidade do Poder Legislativo. Ministro de Estado, que é deputado, ou senador, fica, praticamente, um tanto protegido, politicamente, pelo Poder Legislativo, ao mesmo tempo que se torna intermediário, subalterno, do Presidente da República”.
De acordo com Anna Cândida da Cunha Ferraz[8], nada justifica a exceção prevista no artigo 56, I, pois, “nos sistemas presidencialistas, a missão do deputado ou senador é bem definida: exercer o poder legislativo e fiscalizar a ação governamental do Executivo”, de modo que “o exercício de cargos executivos, de alto escalão, por parlamentares, ludibria a vontade popular e é porta aberta para composições de interesse puramente pessoal, deixado completamente à margem o interesse público”.
É o que tem ocorrido no presidencialismo de coalizão brasileiro, em que a citada regra do artigo 56, I, tem sido posta a serviço da concertação político-partidária e da formação da base de sustentação do chefe do Poder Executivo no Parlamento. Numerosas são as nomeações de parlamentares para ministérios e secretarias de Estado visando a compor a maioria parlamentar e, por conseguinte, obter os principais cargos de comando das Casas Legislativas. Para a coalizão de apoio ao governo, afigura-se imprescindível o controle da Presidência, da Mesa e de outros postos-chave (presidências de comissões parlamentares e relatorias, por exemplo) da Câmara dos Deputados, porquanto é nesta Casa que se inicia a tramitação dos projetos de lei de iniciativa do Poder Executivo[9] e se ultima o processo legislativo, em havendo emenda no Senado[10]. O domínio dos cargos de direção pela coalizão governista possibilita, assim, que o Poder Executivo exerça e logre primazia em matéria legislativa.
Trata-se, enfim, de competência presidencial cujo manejo influi de modo incisivo na dinâmica entre os Poderes Executivo e Legislativo e tem o condão de arrostar as gravosas consequências prescritas no artigo 85 da Constituição da República, dentre elas a que tipifica como crime de responsabilidade os atos do presidente da República que atentem contra “o livre exercício do Poder Legislativo” (inciso I), atos pelos quais os ministros de Estado podem ser corresponsabilizados, se houver conexão (cf. artigo 52, I, também do texto constitucional).
Decerto, o poder presidencial de provimento de cargos comissionados, se empreendido como moeda de troca pelo Executivo com o inconfessável fim de forjar alianças, preordena-se a corromper a vontade de deputados e senadores e modificar o resultado das deliberações legislativas.
Todavia, em um regime constitucional democrático e pluralista — como o brasileiro se autoproclama —, as manifestações parlamentares hão de ser autônomas e não adrede compromissadas e alinhadas com as vontades presidenciais ocasionais ou movidas por contrapartidas ou interesses escusos. Dos legisladores, a sociedade espera que ocupem o centro de gravitação política do País, exerçam com liberdade as suas funções e colaborem com o Executivo na realização do interesse público, por definição superior aos interesses circunstanciais ou pessoais dos governantes eleitos.
É de rigor, pois, em aperfeiçoamento das relações entre os Poderes e aprimoramento do sistema de governo, que seja vedada por emenda constitucional a investidura de deputados e senadores em cargos de ministro ou secretário de Estado, do Distrito Federal ou de prefeitura de capital ou em quaisquer outros cargos ou funções de confiança do Poder Executivo, em bloqueio expresso do popular e antirrepublicano toma lá dá cá.
[1] O artigo I, Seção VI, 2, da Constituição dos Estados Unidos da América de 1787, preceitua de modo semelhante: “Nenhum Senador ou Representante poderá, durante o período para o qual foi eleito, ser nomeado para cargo público do Governo dos Estados Unidos que tenha sido criado ou cuja remuneração for aumentada nesse período; e nenhuma pessoa que ocupe qualquer cargo nos Estados Unidos será membro de qualquer uma das Casas durante sua permanência no cargo”.
[2] O espírito das leis. Trad. de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. Brasília: Universidade de Brasília, 1995, parte II, livro décimo primeiro, capítulo IV, p. 118.
[3] Constituição Federal Brasileira: comentários. Rio de Janeiro: Typographia da Companhia Litho-Typographia, 1902, p. 206.
[4] Na Representação nº 38/2005 ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, o Partido Trabalhista Brasileiro – PTB acusou o então deputado federal José Dirceu de quebra de decoro parlamentar, eis que, “enquanto licenciado dessa Casa para exercer as funções do cargo de Ministro-Chefe da Casa Civil do Presidente da República, em conluio com o Secretário de Finanças do Partido dos Trabalhadores – PT, Delúbio Soares, levantou fundos junto ao Banco Rural e Banco de Minas Gerais – BMG, tomados sob a intervenção e responsabilidade de Marcos Valério, com a finalidade de pagar parlamentares para que, na Câmara dos Deputados, votassem projetos em favor do Governo”. “Assim agindo, o Representado quebrou o decoro parlamentar, porquanto membro titular de mandato legislativo (…), valeu-se daquela atividade junto ao Poder Executivo, para interferir e fraudar o regular andamento dos trabalhos legislativos, alterando o resultado de deliberações em favor do Governo” (fonte: http://www2.camara.leg.br/a-camara/eticaedecoro/representacoes/representacao3805.pdf, acesso em 23 dez 2022). O episódio notabilizou-se como o “escândalo do mensalão” e resultou não só na cassação de mandatos pela Câmara dos Deputados, como na condenação criminal, pelo Supremo Tribunal Federal (Ação Penal nº 470), dos parlamentares envolvidos, acusados da prática de corrupção e outros delitos.
[5] Esse permissivo constitucional tem legitimado, inclusive, o retorno de ministros-congressistas licenciados à Casa de origem para votarem assuntos do interesse do Presidente da República, (vide http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc290105.htm, https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-10/ministro-das-cidades-reassumira-mandato-de-deputado-para-votar-pec-do-teto e https://istoe.com.br/tres-ministros-de-bolsonaro-reassumem-mandato-parlamentar-para-votar-por-reforma/, acesso em 23 dez 2022).
[6] Teoría de la Constitución. 2ª ed. Barcelona: Editorial Ariel Esplugues de Llobregat, 1976, p. 257.
[7] Comentários à Constituição de 1967; com a Emenda n. 1 de 1969. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, t. III, p. 43 e 44.
[8] Conflito entre poderes: o poder congressual de sustar atos normativos do poder executivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 54 e 55.
[9] Cf. art. 64, caput, da Constituição da República.
[10] Cf. art. 65, parágrafo único, da Constituição da República.
https://www.conjur.com.br/2022-dez-27/derly-barreto-presidencialismo-coalizao-corrupcao-politica