A Proposta de Emenda à Constituição nº 2/2003, [1] denominada “PEC dos Cedidos”, representa uma tentativa de solucionar problemas estruturais que impactam diretamente a eficiência e a justiça no serviço público brasileiro.
Apresentada em 25 de fevereiro de 2003 pelo deputado federal Gonzaga Patriota (PSB/PE), a proposta visa a conferir estabilidade jurídica e regularizar a situação funcional de servidores públicos cedidos a órgãos distintos daqueles em que foram originalmente lotados. Mais do que uma solução administrativa, a PEC é um reflexo das transformações históricas e jurídicas pelas quais passa o funcionalismo público, e seu impacto transcende a mera regularização de vínculos funcionais.
Contexto jurídico e necessidade de regularização
A precariedade funcional enfrentada por servidores cedidos decorre de uma desconexão entre a prática administrativa e os princípios constitucionais que regem o serviço público.
Atualmente, milhares de servidores concursados encontram-se cedidos a órgãos distintos daqueles para os quais prestaram concurso. Embora essa prática seja amplamente aceita e regulamentada por dispositivos como a Lei nº 8.112/1990 e o Decreto nº 4.050/2001, ela não assegura estabilidade funcional no órgão cessionário.
Isso deixa o servidor vulnerável a retornos abruptos ao órgão de origem, mesmo após anos de serviço no órgão de destino, muitas vezes sem aviso prévio ou planejamento, o que causa desencadeamentos de toda ordem, inclusive psicológica na vida do servidor cedido.
Essa instabilidade viola princípios fundamentais da Constituição, como o da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III) e da segurança jurídica, além de gerar prejuízos à eficiência administrativo
A experiência e a expertise acumuladas pelo servidor cedido frequentemente se tornam irrelevantes no órgão de origem, resultando em perda de produtividade e descontinuidade administrativa.
Ao estabelecer a possibilidade de transferência definitiva de lotação, a PEC 2/2003 busca corrigir essa distorção e alinhar a prática administrativa aos princípios constitucionais, respeitando, sobretudo, a pessoa humana que exerce o cargo público em questão.
PEC 2/2003 e o princípio do concurso público
A proposta enfrenta críticas significativas quanto à sua compatibilidade com os princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade e eficiência.
Entidades como a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) argumentam que a PEC pode desvirtuar o mérito no serviço público ao permitir que servidores efetivados em órgãos cessionários assumam cargos com atribuições diferentes das originalmente previstas no concurso público. [2]
Essa questão gera preocupação sobre possíveis precedentes para situações similares que possam levar ao aumento indireto de custos administrativos no longo prazo, como a criação de novos cargos para formalizar as alterações de lotação.
Segundo a instituição, a proposta afronta os princípios constitucionais da moralidade e da impessoalidade. Esses fundamentos, consagrados na Constituição, são materializados pela exigência do concurso público como única via legítima e democrática de acesso ao serviço público.
De acordo com a Anamatra, a PEC também viola o artigo 60 da Constituição, ao comprometer valores fundamentais como a cidadania e a isonomia, desrespeitando o rigor jurídico e ético estabelecido no artigo 37.
A associação defende que o concurso público representa a “porta de entrada” para o funcionalismo, garantindo transparência e igualdade de condições para todos os cidadãos. A aprovação da PEC, segundo essa interpretação, enfraqueceria a credibilidade desse mecanismo ao permitir alterações nas lotações de servidores cedidos, que podem ser vistas como um desvio das diretrizes estabelecidas para ingresso e movimentação no serviço público.
Entretanto, é importante destacar que um ponto central da PEC é a preservação do concurso público como critério intransigível para ingresso e permanência no serviço público. A proposta aplica-se exclusivamente a servidores que ingressaram por meio de concurso público ou que já eram investidos em cargo público antes de 1988.
Essa delimitação não apenas reafirma o compromisso com o mérito, mas também previne quaisquer interpretações que possam associar a regularização proposta a mecanismos de efetivação indevida.
A exigência do concurso público, prevista no artigo 37, inciso II, da Constituição, é um dos pilares da moralidade administrativa e visa garantir que o ingresso e a progressão funcional sejam baseados em critérios objetivos, afastando práticas arbitrárias.
Nesse sentido, a PEC reforça o equilíbrio entre os interesses da administração pública e os direitos dos servidores, ao mesmo tempo em que mantém inalterado o modelo constitucional de acesso ao funcionalismo. Não se trata de “entrar pela janela” ou pelo “trem da alegria”, mas de permanecer onde já exerce o cargo público por anos a fio, com toda dedicação e entrega.
Segurança jurídica e legítima expectativa
Outro aspecto relevante da PEC 2/2003 é a previsibilidade que ela confere ao processo de transferência funcional. O texto estabelece um prazo de 90 dias, a partir de sua aprovação, para que os servidores interessados optem formalmente pela transferência. Essa medida garante que a transição ocorra de forma ordenada e transparente, evitando surpresas tanto para os servidores quanto para a administração pública.
Apesar de saber que ocupa um cargo sob a precariedade, a legítima expectativa de estabilidade e continuidade no cargo se sustenta pelo longo transcurso dos anos. Defendemos que, para consolidar essa expectativa, o servidor deve estar em exercício do cargo público por pelo menos dez anos, o que é mais do que o exigido pela PEC 2/2003 (que estabelece apenas 3 anos de efetiva cessão).
Ademais, durante esse período, é fundamental que o servidor tenha sido bem avaliado em seu desempenho pelas autoridades competentes, o que evidenciará não apenas a continuidade de sua função, mas também a qualidade e a eficiência dos serviços prestados.
Ao estipular um período maior de exercício do cargo, além de fortalecer essa expectativa, também se assegura que o servidor tenha demonstrado competência e eficiência em sua função, o que é um reflexo das exigências do artigo 37 da Constituição, que valoriza a eficiência no serviço público e a moralidade administrativa.
Assim, a precariedade da situação não reflete a natureza da relação estabelecida entre o servidor e a administração pública, especialmente quando se considera o tempo de serviço prestado e a adaptação do servidor ao cargo. A expectativa legítima é respaldada por princípios constitucionais, como a segurança jurídica, a boa-fé e a confiança legítima.
Primeiramente, o princípio da segurança jurídica estabelece que as relações jurídicas consolidadas devem ser protegidas contra mudanças inesperadas. A expectativa é reforçada pela boa-fé administrativa, que exige que o Estado cumpra com suas promessas e compromissos tácitos com os servidores, especialmente após um longo período de adaptação e contribuição efetiva para a administração pública.
Além disso, a continuidade do servidor no órgão cessionário, após longo tempo de atuação, deve ser reconhecida, especialmente quando ele contribui efetivamente para a eficiência da administração pública, sendo sempre bem avaliado por suas chefias.
Mesmo que o servidor saiba da natureza transitória de sua situação, a permanência prolongada sem que haja uma mudança formal de lotação gera uma expectativa legítima de regularização. A expectativa de ser reconhecido formalmente, especialmente quando se acumula experiência e competência no novo cargo, é protegida por princípios de dignidade da pessoa humana e razoabilidade, que impedem que o servidor seja tratado de forma arbitrária e sem consideração por sua dedicação e desempenho.
Em termos administrativos, apesar da precariedade inicial, a expectativa legítima de permanência no cargo é uma reivindicação justa e fundamentada, que reflete tanto as condições de trabalho dos servidores quanto os princípios da administração pública.
Dessa forma, é essencial que a administração pública reconheça essa expectativa legítima, permitindo uma solução que, ao mesmo tempo, respeite o princípio da isenção e da moralidade administrativa, sem prejudicar a integridade do serviço público, permitindo o fortalecimento das relações de confiança e a melhoria dos serviços prestados à sociedade.
Vedação ao comportamento contraditório
A vedação de comportamento contraditório (venire contra factum proprium) aplica-se perfeitamente para a análise da mudança proposta na lotação dos servidores públicos. O ordenamento jurídico brasileiro, com base nos princípios da boa-fé administrativa e da segurança jurídica, não admite a contradição nas ações do Estado.
Assim, no caso da PEC 2/2003, os servidores públicos que foram cedidos a órgãos diferentes do seu órgão de origem, muitas vezes por anos, não poderiam ser obrigados a retornar abruptamente a suas funções originais, caso isso contrarie a prática consolidada e as expectativas geradas pela permanência em seus novos postos.
Veja-se que “O princípio da confiança decorre da cláusula geral de boa-fé objetiva, dever geral de lealdade e confiança recíproca entre as partes […]. Assim é que o titular do direito subjetivo que se desvia do sentido teleológico (finalidade ou função social) da norma que lhe ampara (excedendo aos limites do razoável) e, após ter produzido em outrem uma determinada expectativa, contradiz seu próprio comportamento, incorre em abuso de direito encartado na máxima nemo potest venire contra factum proprium”. [3]
A PEC 2/2003, ao regularizar a situação desses servidores, busca evitar que o Estado se comporte de forma contraditória, forçando-os a uma mudança sem considerar o tempo de serviço, os conhecimentos adquiridos e a adaptação ao novo órgão, além da evidente falta de afinidade com o cargo de origem, colegas, e postos de trabalho.
A administração pública deve respeitar a estabilidade funcional já consolidada dos servidores cedidos, sem invocar posteriormente argumentos jurídicos contrários a esse processo. Não lhe é devido aceitar de braços abertos o servidor oriundo de outro órgão, e logo após, o descarta-lo como um objeto, pelo único motivo de não ter prestado concurso para o órgão cessionário, em que pese ter nele exercido a maior parte de sua vida funcional.
Deveras, o venire contra factum proprium “veda que alguém pratique uma conduta em contradição com sua conduta anterior, lesando a legítima confiança de quem acreditara na preservação daquele comportamento inicial“. [4]
A PEC, nesse contexto, pretende corrigir uma distorção histórica sem prejudicar a segurança jurídica dos envolvidos, o que a torna uma medida necessária para garantir a integridade do sistema funcional e a confiança nas relações trabalhistas no setor público.
Impactos econômicos e sustentabilidade fiscal
Ao contrário de propostas que poderiam gerar custos adicionais, a PEC dos Cedidos destaca-se por sua responsabilidade fiscal.
A PEC propõe a transferência definitiva de servidores já cedidos, sem implicar em novas contratações ou aumentos salariais. Conforme previsto no artigo 93, §§ 1º e 5º, da Lei nº 8.112/1990, e no artigo 6º do Decreto nº 4.050/2001, os custos relacionados à remuneração dos servidores cedidos já são assumidos pela União ou pelo órgão cessionário. [5]
Portanto, a formalização dessa situação não gera impacto financeiro adicional ao orçamento público, sendo uma medida economicamente responsável.
Os custos de remuneração desses servidores já são arcados atualmente pelos órgãos onde estão lotados, seja a União, estados ou municípios. Assim, a regularização seria uma formalização de uma prática administrativa consolidada, sem a necessidade de aportes adicionais de recursos. Este ponto é crucial no contexto de controle do gasto público e equilíbrio fiscal, que têm sido prioridade nas reformas da administração pública
Essa característica é particularmente relevante em um contexto de crescente preocupação com o equilíbrio fiscal. Medidas que promovem justiça administrativa e eficiência sem onerar os cofres públicos são não apenas desejáveis, mas necessárias para o fortalecimento das instituições.
Ao consolidar vínculos funcionais já estabelecidos, a PEC contribui para a racionalização dos recursos humanos, ajustando os quadros funcionais às reais demandas institucionais.
Conformidade constitucional e jurisprudência do STF
A constitucionalidade da PEC 2/2003 é corroborada por precedentes do Supremo Tribunal Federal. No julgamento do Agravo de Instrumento nº 746.083/MG, o STF reconheceu a validade de mecanismos destinados à regularização funcional, desde que respeitem os princípios do mérito e da eficiência. O tribunal destacou que medidas como a transformação de função pública em cargo público não violam a Constituição quando alinhadas aos valores fundamentais da administração pública.
No mesmo sentido, a PEC 2/2003 não promove ascensão funcional indevida, mas apenas regulariza a situação de servidores que, após ingresso legítimo no serviço público, consolidaram sua atuação em órgãos cessionários. A proposta harmoniza a eficiência administrativa com a segurança jurídica, demonstrando que é possível corrigir distorções históricas sem comprometer os pilares do modelo constitucional.
Conclusão: urgência da aprovação
A PEC nº 2/2003 é mais do que uma solução técnica para problemas administrativos. Ela é uma resposta às demandas de um serviço público que busca aliar eficiência, justiça e respeito aos direitos fundamentais. Ao permitir a regularização funcional de servidores cedidos, a proposta elimina inseguranças jurídicas, promove a dignidade do trabalhador e fortalece os princípios que regem a administração pública.
O Congresso Nacional, ao priorizar a votação da PEC, não estará apenas valorizando o funcionalismo público. Estará também reafirmando o compromisso com uma gestão estatal mais justa, eficiente e alinhada aos valores constitucionais.
A aprovação da PEC dos Cedidos é um passo fundamental para modernizar o serviço público brasileiro e assegurar que ele continue a servir, de forma equitativa e responsável, aos interesses da sociedade.
[1] BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição nº 2, de 2003. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para tratar da regularização da situação funcional de servidores públicos cedidos. Disponível em: https://www.camara.leg.br. Acesso em: 23 nov. 2024.
[2] Sindicato dos Trabalhadores no Poder Judiciário Federal no Estado de Santa Catarina. Votação da PEC 02 em regime de urgência na Câmara recebe críticas. Disponível em: https://www.sintrajusc.org.br/votacao-da-pec-02-em-regime-de-urgencia-na-camara-recebe-criticas/. Acesso em: 23 nov. 2024.
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.143.216/RS, Rel. Ministro LUIZ FUX, Primeira Seção, julgado em 24/03/2010, DJe 09/04/2010, representativo de controvérsia. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/. Acesso em: 23 nov. 2024.
[4] TEPEDINO, Gustado; BARBOZA, Heloisa Helena; e MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. vol. II. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006, p. 20.
[5] BRASIL. Ofício nº 0923/19 – GP – CZ. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1820827&filename=Tramitacao-PEC%202/2003. Acesso em: 23 nov. 2024.
- Leonis de Oliveira Queiroz é mestre em Regulação e Políticas Públicas (UnB, conceito Capes 6), especialista em Direito Público, graduado em Direito e Segurança da Informação, ex-conselheiro do Conselho Penitenciário do Distrito Federal (Copen-DF), servidor do Superior Tribunal de Justiça (ex-assessor da Presidência), advogado licenciado, autor de livro, capítulo de livro e artigos publicados em diferentes periódicos e revistas eletrônicas.