Por: Adriano Marcena
Não é de hoje que muita gente acredita que a cultura não existe e isso acontece por vários motivos: ignorância, estupidez, vingança política ou moralismo desenfreado, além de outras invencionices de discursos.
Enraizada na parte mais profunda do nosso inconsciente e das nossas práticas cotidianas mais banais, as partículas culturais moldam tudo o que não é biológico no ser humano, ou seja, o que não é músculo, osso, nervo, fluido corporal, carne etc.
Deixando os pós-estruturalistas de lado, cultura é onde mora o verbo, a linguagem, a imaginação, os sabores, as cores, o ressignificar, o reinventar sentidos para o ato de existir, difundido e dinamicamente recriado por uma coletividade. Enfim, cultura seria a condição para se criar uma nova natureza imaginada, colaborativa, representativa, a qual nós nos identificamos e nos tornamos simbolicamente pertencentes.
Não há coletividade sem comida, sem a escolha dos alimentos, sem pratos específicos para determinados festejos. Do mesmo modo, não existe coletividade destituída de religiosidade, de crença em divindades, que mantém viva uma relação com o sobrenatural no pos mortem. Outrossim, não há povo sem rito, sem cerimônias, festejos, musicalidades, danças, folguedos, brincadeiras da infância, literaturas e representação dos seus dramas, farsas e comédias.
De outra forma, todo povo tem expressões e termos específicos, que, no caso de Jaboatão, faz parte do mesmo padrão linguístico do Recife e das cidades circunvizinhas, com algumas peculiaridades semânticas na zona rural.
De igual modo, não existe povo que não tenha ligação com o seu patrimônio material (artístico, histórico, arqueológico e paisagístico) e imaterial (saberes, fazeres e celebrações). É possível pensar muitas cidades brasileiras sem a tradicional igreja da padroeira? Sem os resistentes terreiros de matriz africana? Sem prédios históricos? Sem museus, acervos historiográficos e casas de felicidade? Atualmente, não. No futuro, podem perder suas funções práticas e simbólicas e até desaparecerem da paisagem social, visto que uma das principais características da cultura é a sua dinâmica, ou seja, a capacidade humana de se reinventar.
O problema central de uma política cultural é limitar a cultura às ‘manifestações artísticas’, se esquecendo que o Plano Nacional de Cultura (PNC) ampliou o conceito de cultura desde as discussões iniciais em 2003, com o entendimento de transcender as linguagens artísticas, sem, contudo, minimizar sua importância. Desta forma, cultura não se limita às artes consolidadas e, por ser dinâmica, extrapola o campo artístico e se estende para o simbólico, para a representação, identidade, pertencimento e a própria ressignificação empírica da realidade.
Se a população do Jaboatão dos Guararapes não se identifica como pertencente a um conjunto de símbolos que existem sem suas terras, realmente não existe cultura em Jaboatão. E poderíamos perguntar qual seria o sentido de existência do Conselho Municipal de Cultura ao se afirmar que a cidade não tem cultura?
Todavia, se seus moradores se identificam com a Festa da Pitomba, Procissão de Santo Amaro, Batalhas dos Guararapes, com o Hip Hop, Festa da Manga, Festa de Oxum e de Iemanjá, Mosteja, ALJG, Mercado das Mangueiras, Festa de Nossa Senhora das Candeias, frequentar as praias da Venda Grande, Piedade, Candeias e Barra de Jangada ir ao Cine-teatro Samuel Campelo e assistir ao desfile de 7 de setembro, dentre outras atividades em que se dialoga com os símbolos da cidade, então existe sim uma cultura. Ou melhor, várias culturas.
O problema continua sendo construir uma política pública de cultura que seja capaz de valorizar nossos símbolos, fortalecer a cena artística e fazer da cultura um vetor econômico capaz de gerar renda e oportunidades colaborativas.
Quando o poder público diz que um povo não tem cultura, talvez o conceito de cultura utilizado esteja bem distante dos norteadores conceituais sobre a categoria cultura e é sempre bom lembrar que a cultura faz parte dos Direitos Sociais dos brasileiros, devidamente assegurados pela Constituição de 88. Custa nada lembrar que os cabelos são biológicos. Contudo, os penteados são culturais. Sem a música, o silêncio perderia a sua imponência existencial.
Adriano Marcena é escritor, historiador e dramaturgo. Foi presidente-fundador do Conselho Municipal de Cultura do Jaboatão dos Guararapes e primeiro presidente da Academia de Letras do Jaboatão dos Guararapes – ALJG. É sócio da Flystar Empreendimentos Culturais, startup da economia criativa, embarcada no Porto Digital do Recife, que produz a Turma da Joaquina.