01. A linguagem tem suas mutações temporais, surpreendendo o vocabulário a cada tempo, em formulação de conceitos que expressam as variáveis dos significados peculiares. A linguagem tem narrado pensamentos, críticos ou substanciais, em realidades que comungam épocas. E quando as palavras se tornam obsolescentes, as expressões mudam as suas projeções, importando um rompimento cultural no pensamento, complexo ou não, das comunidades da vida.
Família(s) também são assim: as palavras apropriam seus novos significados, em construções mais que estéticas, buscando a precisão. O seu uso plural, a propósito, intenta explicar mais.
A família, juridicamente nacional, completou 133 anos (Dec. n. 181, de 24.01.1890) e desde então, a temporalidade das palavras, nas suas durações, a descreve como tem sido, em seus institutos jurídicos. Ao fim e ao cabo desse período, o direito de família vem obtendo uma significativa história de avanços.
As formações dos institutos do direito de família, começam pela própria revisão conceitual de família, quando etimologicamente a família deriva do termo “famulus” que designava o escravo com seu serviço em casa. Ao conjunto de escravos sob a autoridade patriarcal, constituía-se, então, uma família [1].
Modernamente, o melhor conceito de família, como a principal organização social, situa-se no Dicionário de Antônio Houaiss, a expressar tratar-se de um “núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma relação solidária”. Mariana Chaves leciona que “outros dicionários, como o Priberam, de Portugal, e o da Real Academia Española, também não fazem referência a gênero” (IBDFAM, 11.05.2016), implicando conceituações que reconhecem novos vínculos, em pluralismo familiar.
De fato. Os arranjos conceituais de família têm na atualidade, apresentado efeitos expressivos à configuração de novas estruturas familiares [2].
A partir de mudanças e/ou de inovações significantes, expressões e palavras ganham um novo relevo jurídico, ora caem em desuso ou são (re)construídas, no efeito de dinamizar a família e o direito que dela se extrai.
Desparece o pátrio poder, este é substituído pelo poder familiar (art. 1630, Código Civil), inerente ao casal e que, em valioso trespasse, redefine as relações parentais e institui dinâmica de ordem jurídica destinada ao primado da dignidade da família e de seus membros, individualmente considerados.
Desapareceu a questão do “dote”, cujos valores eram concedidos em forma de bens de produção, instituição trazida pelos portugueses ao Brasil Colônia no século XVI e que servia como “a garantia da vida inicial dos recém-casados”.
Desaparecem expressões clássicas como as do concubinato puro e do concubinato impuro, por completo desuso e flagrante falta de adequação, diante do art. 1.727 do Código Civil. O dispositivo exige melhor leitura da cláusula “impedidos de casar”. É que aquele que esteja separado de fato, impedido de casar por não se achar ainda divorciado, pode constituir união estável, a teor do art. 1.723 § 1º do Código Civil, que reconhece possível a união estável. No ponto, subsistem o “amantismo”, em face de uniões paralelas de pessoa casada e a “união estável putativa”, em coexistência de núcleos familiares (hipótese de o convivente insciente do verdadeiro estado civil do outro constituir a seu favor uma união estável de boa-fé.
Expressões outras estão em relicário do passado. Impõe-se anotar os termos téuda e manteúda, previstos no artigo 279 § 1º do Código Penal de 1890 – Decreto nº 847, de 11 de outubro, ao tratar do crime de adultério ou infidelidade conjugal, com pena de um a três anos. A teúda é definida como a amante, sem suporte financeiro do companheiro enquanto a manteúda, a mantida financeiramente pelo homem casado.
O adultério resultou descriminalizado com a Lei nº 11.106, de 28.03.2005, ao revogar o art. 240 do Código Penal de 1940, perdendo os seus efeitos penais e apenas considerado como ilícito civil sob o elemento “infidelidade”.
02. Nessa travessia temporal obsolescente, observa-se que algumas expressões foram contextualizadas ao seu tempo novo, em adequado afastamento de conotações preconceituosas, abandonando-se, v.g., os termos “homossexual” e “pessoa portadora de deficiência” (PPD), com a introdução no sistema jurídico de “casais homoafetivos” e de “pessoa com deficiência” (PCD) da Lei nº 13.146/2015, corrigindo-se a forma equivocada da designação.
03. Há dizer das novas expressões cunhadas, como as da “desbiogilização da paternidade” (João Baptista Vilela, 1979) e da “paternidade socioafetiva” (Luiz Edson Fachin, 1982), configuradas pelo atual art. 1.593 do Código Civil; da “despatrimonialização da família” (Paulo Luiz Netto Lobo, 2002) [3], da “convivência familiar” e da “solidariedade familiar”, dentre outras,
Vilela ao tratar da “desbiologização da paternidade” a definiu como um fato e uma vocação, dado que a paternidade é muito mais uma opção e um exercício, e não simples mercê ou fatalidade. [4]
Fachin ao referir sobre a “paternidade socioafetiva”, encontra a família, como um “ente aberto e plural’, “não exclusivamente matrimonializada, diárquica, eudemonista e igualitária”, porquanto na atual família constitucionalizada começam a dominar as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação.
A própria lei começa a consignar outras entidades familiares socialmente constituídas, como famílias monoparentais ou as formadas por uniões de fato.
Diferentes outras estruturas interpessoais têm sido admitidas juridicamente como famílias, em visão pluralista conforme, delineando um novo álbum de família, a exemplo das advenientes de (I) posse de estado de filho, (ii) das unidades parentais sem chefia, como nas denominadas “mães solo”, com o matriarcado imposto pelo abandono e por não assunção da paternidade dos filhos; (iii) das pessoas sozinhas, solteiras ou viúvas, as famílias single, a cuja configuração a jurisprudência vem recepcionar nos fins da proteção do bem de família.
E mais outras famílias são possíveis, como as reconstituídas, com prole de uniões anteriores do casal, ou as fissionais, entendidas na Itália como entidade familiar experimental, formada por pessoas denominadas celibertárias, cuja unidade de convivência resume-se aos fins de semana ou a períodos de lazer e viagem. Há ainda, na escala dos afetos, o “ficar”, a “ficada” (“manter com alguém convívio de algumas horas, sem compromisso de estabilidade ou fidelidade amorosa”) avocando análises jurídicas possíveis, com interessante artigo de Euclides de Oliveira. [5]
04. Segue-se assinalar um pequeno rol contemplando outras novas expressões, quando, então, foram cunhadas e empregadas em nossos estudos, diante da evolução da família no direito. Vejamos:
(i) “Abandono afetivo inverso”. Diz-se abandono afetivo inverso a inação de afeto, ou mais precisamente, a não permanência do cuidar, dos filhos para com os genitores, de regra idosos, quando o cuidado tem o seu valor jurídico imaterial servindo de base fundante para o estabelecimento da solidariedade familiar e da segurança afetiva da família. (Alves, 2013). Essa falta de cuidar serve de premissa fática de base para a indenização.
O vocábulo “inverso” corresponde a uma equação às avessas do binômio da relação paterno-filial, dado que ao dever de cuidado repercussivo da paternidade responsável, coincide valor jurídico idêntico atribuído aos deveres filiais (artigo 229 da Constituição Federal de 1988).
No ponto, a paternidade responsável ao lado do “bom pai diligente” do direito francês, chama a da “filiação responsável”, expressões essas mais recentemente tratadas pelo direito familista.
(ii) “Casal Parental”. Nada obstante se colocarem como ex-parceiros de um relacionamento findo, eles continuam substancialmente permanentes, como pais comuns que são dos mesmos filhos. Assim, sujeitos às mesmas obrigações parentais e mais que isso, submetidos a uma nova realidade familiar, pelo axioma de que “a separação do casal exige melhores pais”.
Este “casal parental” representa os novos protagonistas da família mais duradoura possível, aquela que tem sua extensão na exata medida que prossegue pelos filhos que existem; desafiando os sistemas jurídicos a uma vigília antialienante de uma parentalidade mórbida ou desconforme. [6]
(iii) “Famílias mútuas”. Essa situação decorre de experiencia fática em face da troca de bebês em maternidades, nascidos em mesmo dia, decorrente da ineficiência da administração hospitalar, o que tem provocado, com estatísticas alarmantes, que famílias assumam como filhos aqueles que são de outras famílias.
As soluções subsequentes são a destroca dos filhos (em medida do possível) a retificação dos registros civis pessoais (com a mudança dos prenomes) e as indenizações por danos morais (de caráter compensatório); quando as sequelas psicológicas são profundas, os fatos da vida se tornaram inexoráveis pelos danos existenciais causados, valendo, por essencial, os vínculos socioafetivos que jamais se desfazem.
Ao fato de essas famílias os terem como verdadeiros filhos, ao fim e ao cabo de uma convivência familiar prolongada, em manifesta parentalidade socioafetiva, impõe-se um novo olhar jurídico. Recolhem-se esses fatos da vida como elementos indutores ao surgimento determinante do que ora se denomina de “famílias mútuas”. [7]
(iv) “divórcio impositivo”. O termo aparece consagrado no Provimento nº 06/2019, da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Pernambuco, de nossa autoria. Diante do caráter potestativo do divórcio, o Provimento editado permitia que o pedido de divórcio fosse requerido unilateralmente, por meio de requerimento ao Cartório de Registro Civil para averbação do divórcio à margem do respectivo assento, independentemente da presença ou da anuência do outro cônjuge, que seria apenas notificado, para fins de conhecimento da averbação.
Conforme bem destacou Hugo Chusyd, em artigo “Divórcio Impositivo: O Divórcio do amanhã” (IBDFAM, 21.09.20) “o Provimento nº 06/19, embora não tenha vingado, disseminou uma mensagem de importância incomensurável, ao conferir à autonomia da vontade de qualquer um dos cônjuges, caráter absoluto, no que pertine ao seu estado civil.”
E acrescentou: “Exemplo mais notável do reflexo positivo do Provimento nº 06/19, foi a apresentação do Projeto de Lei 3457/19, atualmente em tramitação no Senado Federal, com parecer favorável por sua aprovação na CCJ – Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania”.
(v) “desfiliação”. A desfiliação da parentalidade paterna ou materna (ou ambas), se apresenta como um direito existencial do filho, constituindo um novo fenômeno jurídico que o direito deve contextualizar no sistema. As desconstituições da filiação, em rupturas dos vínculos ficto e registral se apresentam também em vieses jurídicos, às avessas, onde é o filho quem busca romper uma filiação não desejada ou em rejeição ao poder familiar.
Induvidosamente a retirada jurídica da função parental, em destituição da autoridade do poder familiar, e/ou a ruptura do vínculo biológico, com alterações mais significativas, tem diversos fundamentos e causas; notadamente quando colocados os filhos em desamparo material-afetivo, por abandono paterno, sevicias ou maus-tratos.
05. Os valores jurídicos da família passam a ser dimensionados por novas expressões, a saber, com o devido destaque:
- Namoro qualificado. O termo foi cunhado pelo mestre Zeno Veloso ao referir sobre o relacionamento com evolução de afeto onde as partes não se relacionam com animus de formar família, não obstante coabitem por períodos. Tudo sugere os contratos de namoro que Marilia Pedroso Xavier (Fórum, 2020) e Felipe Cunha de Almeida (Thoth, 2022) discorreram e Mário Delgado dissertou em distinção da união estável (Conjur, 28.08.2002).
- (ii) “Cuidado familiar”. A expressão ingressa no direito como um dever jurídico e um valor (STJ- 3ª Turma; REsp 775.565/SP j. 26.06.06), “pois não se discute mais a mensuração do intangível – o amor – mas, sim, a verificação do cumprimento, descumprimento, ou parcial cumprimento, de uma obrigação legal: cuidar. […] Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico…”)
- (iii) “Família ética”. A expressão foi construída (2018) pelo britânico Paul Collier, da Universidade de Oxford, segundo a fórmula de um vínculo, não apenas afetivo, mas de obrigações mútuas, com potenciais de reciprocidade e de pertencimento, um sistema de crenças e de responsabilidades. Nela, integram-se deveres e obrigações da comunidade familiar moderna.
- (iv) “Multiparentalidade”. Na afirmação doutrinária de Flávio Tartuce e José Fernando Simão, a dizer que a multiparentalidade é a consolidação da afetividade como princípio jurídico, tem-se o melhor referencial do termo. A parentalidade múltipla guarda conformidade com os fatos da vida, para integrar-se, em inexorável liame com o valor do afeto, ao contexto personalístico da pessoa, nas relações familiares que possua, juridicamente consideradas e reconhecidas.
- (v) “Parentificação”. O termo designa o mais grave fenômeno emocional, estudado por Gregory J. Jurkovic (1998) quando os filhos da violência conjugal/convivencial, sofrendo por longo prazo os impactos psicológicos dos conflitos e vias de fato dos genitores, assumem, dramaticamente, neste cenário, o papel de confidente ou mediador entre os pais.
- (vi) “Shrarentig”. O termo, uma combinação, em inglês, das palavras share (compartilhar) e parenting (parentalidade), corresponde à exposição imoderada da criança e do adolescente pelos pais nas redes sociais e foi objeto de estudo da acadêmica americana Stacey Steinberg. A doutrina tem trabalhado o tema com muita preocupação, valendo citar os estudos de Carla Moutinho e a obra de Larissa A. Antunes e Luís G. l. Tizzo (Thoth, 2022)
- (vi) “Abandono digital”. É a negligência parental configurada por atos omissos dos genitores, que descuidam da segurança dos filhos no ambiente cibernético proporcionado pela internet e por redes sociais, não evitando os efeitos nocivos delas diante de inúmeras situações de risco e de vulnerabilidade. O termo foi cunhado por Patrícia Peck Pinheiro, avaliando que “os pais têm responsabilidade civil de vigiar os filhos”, quando “a internet é a rua da sociedade atual”
A família mudou no tempo e no direito. Em imensa distância do vetusto art. 20 do Decreto nº. 181/1890 [8] a família assume hoje a sua realidade social e se faz, por isso mesmo, contemporânea com o seu futuro.
[1] Julius Paulus Prudentissimus, jurisconsulto romano (séc. III d. C.) esclarecia: “familiæ nomine etiam duo servi continentur” (“com dois escravos já se constitui o que se chama uma família”).
[2] ALVES, Jones Figueirêdo. Consultor Jurídico, 27.06.2021. Web: https://www.conjur.com.br/2021-jun-27/processo-familiar-formacoes-conceituais-institutos-direito-familia
[3] LÔBO, Paulo. Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Anais do
III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e Cidadania.
Belo Horizonte: Del Rey, 2002
[4] VILLELA, João Baptista. Desbiologização da Paternidade. In: Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, nº 21, ano 1979.
[5] OLIVEIRA, Euclides de. IBDFAM. Web: https://ibdfam.org.br/assets/upload/anais/13.pdf
[6] ALVES, Jones Figueirêdo. Casal parental merece maior atenção do Direito de Família. Consultor Jurídico, 10.02.2014. Web: https://www.conjur.com.br/2014-fev-10/jones-figueiredo-casal-parental-merece-maior-atencao-direito-familia
[7] ALVES, Jones Figueirêdo. Famílias mútuas. Web: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/121822691/familias-mutuas-artigo-de-jones-figueiredo-alves
[8] Dec. 181/1890. “Art. 20. Os paes, tutores ou curadores dos menores ou interdictos poderão exigir do noivo ou da noiva de seu filho, pupillo ou curatelado, antes de consentir no casamento, certidão de vaccina e exame médico, attestando que não tem lesão, que ponha em perigo proximo a sua vida, nem soffre molestia incuravel, ou transmissivel por contagio, ou herança”.
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