A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 6.338 marca uma virada crucial na luta contra as práticas fraudulentas que minam a efetividade das cotas de gênero.
Ao validar a interpretação dada pelo Tribunal Superior Eleitoral, a Suprema Corte destacou a necessidade de se punir “todos os envolvidos” nas fraudes à cota de gênero. Com isso, o STF abriu caminho para a responsabilização dos verdadeiros arquitetos das campanhas eleitorais: os dirigentes partidários.
Na ADI 6.338, relatada pela ministra Rosa Weber, o STF assentou que é adequada a interpretação dada pelo TSE ao artigo 10, § 3º, da Lei 9.504/1997 c/c o artigo 22, XIV, da LC 64/1990.
O tribunal entendeu que a interpretação da Corte Eleitoral não viola o princípio da proporcionalidade, ”porquanto apta [a] punir todos os envolvidos nas práticas fraudulentas, bem como extirpar do ordenamento jurídico os efeitos decorrentes dos atos abusivos, mediante a cassação do registro ou do diploma de todos que deles se beneficiaram” (1).
Norma cindível
A ministra Rosa Weber, ao analisar o artigo 22, XIV, da LC 64/1990, reconheceu que essa norma possui dois núcleos distintos.
O primeiro comina a inelegibilidade a todos aqueles que contribuíram para prática do ato abusivo.
O segundo prescreve a cassação do registro ou do diploma a todos aqueles que se beneficiaram das ilicitudes perpetradas. Confira-se o voto condutor:
7.1. Transcrevo abaixo, para melhor compreensão da controvérsia, o termo do artigo 22, XIV, da Lei Complementar 64/1990:
Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito:
(…)
XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar;”
A mera análise do dispositivo legal acima colacionado permite constatar a existência de norma cindível, vale dizer, há dois núcleos distintos em referido inciso.
A primeira parte do dispositivo comina a inelegibilidade de todos aqueles que hajam contribuído para prática do ato abusivo.
A segunda metade, por outro lado, prescreve a cassação do registro ou do diploma não só dos autores das condutas abusivas, como também de todos que tenham se beneficiado das ilicitudes perpetradas.
Aliás, essa é a jurisprudência do próprio Tribunal Superior Eleitoral quanto ao tema que há muito tempo assevera a divisibilidade hermenêutica do artigo 22, XIV, da Lei Complementar 64/1990. A título exemplificativo, cito o RO 29.659/SC, rel. min. Gilmar Mendes, Tribunal Superior Eleitoral, DJe 29.9.2016. (ADI 6.338, rel. min. Rosa Weber, Pleno, voto da relatora, sem os grifos no original)
Ora, havendo dois núcleos, a punição por fraude à cota de gênero só se mostra adequada como decidido na ADI 6.338 — se incluídos no polo passivo todos aqueles que contribuíram para a fraude e todos aqueles que dela se beneficiaram.
O caso é de litisconsórcio necessário comum, não unitário (2). A necessariedade desse litisconsórcio é fruto exclusivo de uma determinação específica de lei: o artigo 22, XIV, da LC 64/1990. Essa distinção supera a ideia de que os dirigentes partidários são “litisconsortes facultativos” (3), como entendeu o Tribunal Superior Eleitoral no AREspEl 0601556-31 e AREspEl 0601558-98, cujo julgamento ocorreu quando já publicado o acórdão da ADI 6.338.
Chave das políticas e corresponsabilidade
Os dirigentes partidários, por sua posição estratégica na escolha e registro dos candidatos, detêm a chave para o sucesso ou fracasso das políticas de igualdade de gênero.
Sua influência direta na concretização das candidaturas os torna peças centrais no cumprimento das cotas de gênero.
Porém, quando esses dirigentes falham em manter candidaturas femininas juridicamente viáveis (4), eles não apenas violam a norma eleitoral, mas também contrariam o espírito da democracia, que busca a representatividade de todos os segmentos da sociedade.
A inclusão dos dirigentes partidários como litisconsortes passivos necessários não é apenas adequada, mas necessária para conferir efetividade ao artigo 10, § 3º, da Lei 9.504/1997.
Essa abordagem garante um efeito dissuasório mais forte contra as fraudes à cota de gênero, pois coloca na mira da Justiça Eleitoral aqueles que têm o poder de decisão e influência sobre as candidaturas.
Nos termos da ADI 6.338, a punição só se mostra adequada se incluídos na ação todos aqueles que contribuíram para o ato, que serão sancionados com inelegibilidade, e todos aqueles que se beneficiaram da fraude, que serão punidos com a cassação do registro ou do diploma.
Coerente com o artigo 22, XIV, da LC 64/1990, é imprescindível que os dirigentes partidários, como facilitadores ou anuentes, sejam considerados corresponsáveis pelas fraudes à cota de gênero.
Por causa da sua eficácia vinculante, deve a Justiça Eleitoral se adequar à ADI 6.338, ordenando a inclusão dos dirigentes partidários. Não há fraude à cota de gênero sem a participação ou anuência dos dirigentes partidários.
A inclusão dos líderes reflete um entendimento mais profundo das dinâmicas que perpetuam a desigualdade de gênero nas esferas de poder, bem como um compromisso renovado com a integridade do processo eleitoral.
Outrossim, ainda no quesito necessidade, a inclusão dos dirigentes se harmoniza com os objetivos almejados pela ADI 6.338. A citação dos líderes é necessária para “evitar a contumaz recalcitrância das agremiações partidárias no adimplemento da ação afirmativa (cota de gênero)”.
A sanção de inelegibilidade aos verdadeiros arquitetos das campanhas eleitorais é indispensável para fomentar, de maneira potencial e inédita, a participação feminina na política.
Para garantir a eficácia das cotas de gênero, é imperativo que a Justiça Eleitoral adote uma postura firme para a efetiva inclusão dos dirigentes partidários como litisconsortes passivos necessários.
Só assim haverá um avanço real na luta pela igualdade de gênero na política brasileira, Como artífices do processo de escolha e registro dos candidatos, é dos dirigentes partidários a responsabilidade de apresentar candidaturas femininas viáveis.
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Notas:
(1) Não há falar em violação do princípio da proporcionalidade. Isso porque a interpretação do art. 10, § 3º, da Lei 9.504/1997 c/c art. 22, XIV, da Lei Complementar 64/1990 é: (i) adequada, porquanto apta punir todos os envolvidos nas práticas fraudulentas, bem como extirpar do ordenamento jurídico os efeitos decorrentes dos atos abusivos, mediante a cassação do registro ou do diploma de todos que deles se beneficiaram; (ii) necessária para evitar a contumaz recalcitrância das agremiações partidárias no adimplemento da ação afirmativa (cota de gênero) instituída pelo legislador, de modo a transformar as condutas eleitorais, incentivando, efetivamente, a participação feminina na política; (iii) proporcional em sentido estrito, tendo em vista que, ao contrário do sustentado, não acarreta desestímulo para participação do pleito e incentiva os partidos a fomentarem, a desenvolverem e a integrarem a participação feminina na política” – ADI 6.338, Rel. Min. Rosa Weber, j. 3.4.2023, DJe 7.6.2023.
(2) Há aqui uma semelhança com o litisconsórcio necessário ditado pelo art. 6ª da Lei de Ação Popular, o caso mais expressivo de litisconsórcio necessário comum (não unitário). Confira-se a lição de Cândido Rangel Dinamarco: “Sempre partindo da premissa de que unitariedade e necessariedade exprimem ideias diferentes, há casos em que a lei exige a formação do litisconsórcio (necessariedade) mas, uma vez formado este, os litigantes serão tratados de modo relativamente autônomo (CPC, art. 117 – supra, nn. 663-664) e não segundo as regras da homogeneidade (daí, o litisconsórcio ser comum, não unitário). Isso sucede somente quando a necessariedade do litisconsórcio é fruto exclusivo de uma determinação específica de lei, sem haver a incindibilidade do objeto do processo. O caso mais expressivo é o litisconsórcio passivo necessário, ditado pela Lei da Ação Popular em relação a todos os sujeitos que hajam participado do ato impugnado e a todos os beneficiários deste (Lei n. 4. 717, de 29 .6.65, art. 6º)” – DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil, volume II. São Paulo: Malheiros, 9ª ed., 2023, item 674, p. 420/421.
(3) “A exigência de litisconsórcio passivo necessário somente se faz indispensável quando presentes as partes integrantes da relação jurídica de direito material. Não é o caso dos autos, em que os dirigentes partidários, quando muito, podem figurar na relação jurídica, mas como litisconsortes facultativos” – AREspEl 060155631 e AREspEl 0601558-98, Rel. p/acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. 13.6.2023, DJe 24.8.2023.
(4) “(…) as agremiações partidárias, como pessoas jurídicas essenciais à realização dos valores democráticos, devem se comprometer ativamente com a concretização dos direitos fundamentais – são dotados de eficácia transversal – mediante o lançamento de candidaturas femininas juridicamente viáveis, minimamente financiadas e com pretensão efetiva de disputa” – REspEl 060096583, Rel. Min. Floriano de Azevedo Marques, j. 29.8.2023, DJe 15.9.2023.
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