Erick Felipe Medeiros
Civil Tecnologia
É inegável que a inteligência artificial está revolucionando diversos setores, e o direito autoral é um grande exemplo disso. As criações automatizadas de músicas, textos e imagens através das chamadas IAs generativas trazem reflexões sobre se de fato é lícito a criação de tais obras a partir de uma ferramenta de inteligência artificial.
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Indo um pouco mais além, no campo da regulamentação da IA no Brasil, após a criação de uma poesia usando uma aplicação de IA, quem de fato teria os direitos sobre essa obra? O criador/desenvolvedor da IA, quem pensou e executou as perguntas e direcionamentos à IA (criador do prompt), ou nenhum dos dois? Pensando pelo lado regulatório, a legislação atual ou até mesmo o projeto de lei sobre a IA no Brasil (PL 2.338/2023) estão preparados para lidar com a autoria e a titularidade de obras criadas por IA? O que são direitos autorais?
Antes de analisarmos alguns casos práticos, é importante entender o que a lei brasileira diz sobre direitos autorais. A Lei de Direitos Autorais (nº 9.610/98) define “autor” como a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica (artigo 11). Ou seja, a lei reconhece e protege os direitos daqueles que criam algo original, fruto de seu intelecto e criatividade.
Essa proteção abrange tanto os direitos morais, como o de ter seu nome reconhecido como autor da obra, quanto os direitos patrimoniais, que se referem ao direito de reprodução, distribuição e outras formas de utilização da obra.
A lacuna legislativa e o projeto de lei sobre IA
A legislação atual, no entanto, não prevê a possibilidade de uma IA ser considerada autora de uma obra. Ela não se encaixa na definição legal de autor, que exige que seja uma pessoa física. Por assim, a IA não tem direitos de personalidade. O Projeto de Lei sobre inteligência artificial (PL 2.338/2023), que ainda está em trâmite no Congresso, também não resolve essa questão. Embora o projeto aborde diversos aspectos do uso da IA, ele não define claramente quem seria o autor de uma obra criada por IA deixando uma lacuna legislativa importante.
O pior, em nosso entendimento uma lacuna sem precedente, pois as inteligências artificiais generativas, ou seja, aquelas que “criam” a partir de comandos, são as mais usadas no mundo. Através dela podemos ter a concepção de textos, imagens, vídeos, músicas, apresentações e muitas outras coisas. Ou seja, o mais importante na regulação das IA, pelo menos no Brasil, está sendo deixado de lado ou pior, sequer está sendo debatido.
Estudo de caso: Pigcasso e o macaco Naruto: uma questão de autoria
Dois casos emblemáticos ilustram a complexidade dessa discussão sobre a detenção de direitos autorais de uma criação intectual: o da porca Pigcasso e o do macaco Naruto.
Pigcasso é uma porca que foi resgatada de um matadouro na África do Sul quando era filhote. Joanne Lefson, a ativista que a resgatou, percebeu que Pigcasso tinha interesse em tintas e pincéis que estavam em seu quintal.
Lefson começou a incentivar o talento artístico da porca, fornecendo-lhe materiais de pintura. Pigcasso aprendeu a segurar o pincel com a boca e a criar obras de arte abstratas coloridas. Suas pinturas ganharam popularidade e foram vendidas por milhares de dólares, com uma obra sendo vendida por US$ 27 mil (cerca de R$ 140 mil). No entanto, há controvérsias sobre a autoria de suas obras, já que ela pinta com a ajuda de sua tutora, que lhe fornece os materiais e a incentiva.
Já o caso do Macaco Naruto aconteceu em 2011. O fotógrafo David Slater perdeu a sua câmera no meio da selva na Indonésia, quando tentava fotografar uma família de macacos. Um dos macacos tomou ela de sua mão e saiu correndo. Depois de um tempo andando na selva o fotógrafo achou a câmera no chão e verificando a memória dela, percebeu que sua câmera foi utilizada pelo macaco para tirar várias fotos aleatórias, porém, uma dessas fotos, era uma selfie do próprio macaco.
A imagem viralizou e foi usada pela Wikipedia, que alegou que a foto era de domínio público por terem sido tiradas por um animal. Slater discordou, argumentando que detinha os direitos autorais por ter configurado a câmera e propiciado a situação.
Mas o que as IAs generativas têm a ver com Pigcasso e o Macaco Naruto?
As IAs generativas, como o ChatGPT, Gemini, Dall-e e Midjourney, funcionam de forma semelhante à Pigcasso. Elas são alimentadas com dados e informações por seus criadores e, a partir disso, geram obras originais. Assim como no caso da porca, há a questão da influência humana na criação. A porca só pintava porque sua tutora escolhias as cores, preparava a tinta, escolhia os tipos de pinceis e a porca somente executava o “serviço”.
A diferença entre Pigcasso e o macaco Naruto reside no grau de autonomia e intencionalidade na criação. Enquanto Naruto agiu por conta própria ao utilizar a câmera, sem qualquer tipo de direcionamento, Pigcasso depende da intervenção humana para pintar. Essa diferença se reflete no debate sobre a autoria das obras geradas por IA. Alguns argumentam que a IA é apenas uma
ferramenta utilizada pelo usuário, que seria o verdadeiro autor. Outros defendem que a IA possui autonomia suficiente para ser considerada autora.
O grande cerne da questão está no fato de saber, a IA seja ela generativa ou não, funciona sem a intervenção humana? O ChatGPT, por si só, todas as manhãs produz um texto ou uma poesia? Logicamente que não. A força intelectual é do instrutor (ser humano) que lhe dá os comandos (prompts) certos para a execução de determinada tarefa.
Conclusão
A inteligência artificial está desafiando o conceito tradicional de autoria e propriedade intelectual. A legislação atual não oferece respostas claras para a questão da autoria de obras criadas por IA, e o projeto de lei em trâmite não resolve essa lacuna.
Não raro, vemos processos judiciais discutindo questões de direitos autorais de uma criação com IA. No momento, a “bola da vez” são as vozes de determinadas pessoas que acusam os desenvolvedores de IA de a usarem sem autorização ou sem a devida indenização/retribuição.
O que também abre um outro debate sobre a voz de uma pessoa, ser ou não um direito intelectual. É necessário um debate amplo e aprofundado sobre o tema para que possamos encontrar soluções justas e equilibradas que protejam tanto os direitos dos criadores humanos quanto o desenvolvimento da IA, pois querendo ou não, essa tecnologia veio pra ficar.
Afinal, a inteligência artificial é uma ferramenta poderosa que pode trazer inúmeros benefícios para a sociedade, mas é preciso garantir que seu uso seja ético e responsável, respeitando os direitos de todos os envolvidos.
Erick Felipe Medeiros
é advogado, pós-graduado em “Direito Digital e Proteção de Dados Pessoais” pela Ebradi. Pós-graduando em “Legal Operations: dados e IA” pela PUC-PR. Pós-graduando em “Direito Empresarial e de Startups” pelo Ibmec. Especialista em condutas anticompetitivas pela FGV-Online. Professor convidado do Senac-Bauru paras as turmas/cursos de Tecnologia e Design, Gestão de Projetos e Marketing Digital.