Direto de Quebec-City, Canadá
É véspera de irmos embora de Quebec-City. Impossível não deixar parte de nós e não levar parte da cidade conosco.
Dormimos até o sono acabar, tomamos nosso café da manhã e chamamos o táxi para nos levar até as Cataratas de Montmorency, Chute Montmorency, ou Parque de la Chute-Montmorency.
O motorista, nascido no CHAD, centro da África, muito gentil entendeu que gostaríamos que ele nos esperasse terminar o passeio nas cataratas, que apesar de menos visitada que as Cataratas do Niágara na província de Ontário é 30 metros maior e também de uma beleza que por mais que descrevamos algo sobra sem ter sido contado.
Deixamos a velha Quebec para trás e na medida que o táxi seguia pela rodovia os blocos de gelo nas águas do rio Saint-Lawrence me lembravam do acerto em haver escolhido passar um inverno extremo aqui na província de Quebec. Montreal houvera sido linda, mas Quebec-City foi o encanto final.
Com uns vinte minutos de estrada nevada estávamos no Parque de la Chute-Montmorency, deliciando-nos com paisagens, nevasca e queda d’água. Lembrei de uma música chamada “Espelhos” cuja letra diz “E cada gota de vida, eu bebo, eu bêbado, embriagado, contigo… vejo em tantos espelhos, quanto tempo perdido”. Viver intenso me fascina, inclusive, atropelando o medo.
Satisfeitos como quem está faminto e come um cordeiro com ervas regado ao vinho tinto, saímos de volta para a cidade. Pedi ao motorista que nos deixasse nas “Planicies de Abrahão”, o primeiro parque histórico do Canadá e palco da mais importante batalhas entre franceses e ingleses, travada lá por 1759 e que selaria o destino do país.
Caminhamos sob chuvas de flocos de neve que ousavam entrar na boca e, com ajuda do vento, no nariz. Como Lily gosta, cantei um trecho de Disritmia, de Martinho da Vila: “Eu quero ser exorcizado pela água benta desse olhar infindo. Que bom é ser fotografado, mas pelas retinas desses olhos lindos. Me deixe hipnotizado, pra acabar de vez com essa disritmia”. Foi assim que nos sentimos, hipnotizados pela beleza das paisagens que invadiam nossas retinas momento a momento.
Deixamos o parque nacional “Planícies de Abrahão” e seguimos rua abaixo chutando neve. Gravei um vídeo para um novo documentário que lançarei ainda em 2022, na frente do Parlamento do Quebec e resolvi ir além. Fui até os policiais que fazem a segurança do local e disse que gostaria de entrar para conhecê-lo melhor.
Fomos bem recebidos, passamos pelos aparelhos de Raio-X e revista como se estivéssemos em um aeroporto internacional e seguimos pelos corredores. Repentinamente apareceu Gigi, uma senhora gentilíssima que nos indicou o melhor roteiro para aproveitar a visita.
Descemos uma rampa encaracolada, assistimos um vídeo chamado “Confluence”, com apresentação do trabalho do Parlamento e da “filosofia” do que pensa o povo do Quebec, cuja intenção é que haja confluência entre respeito, saúde, segurança, convivência pacífica entre todas as gentes daqui, etc.
Terminada a apresentação fomos à Biblioteca do Parlamento. Coisa de filme! Evitei pirar o cabeção com tanto livro bom. Peguei uma cartilha gratuita sobre o “Censo com as perspectivas literárias no Quebec” e corri para o guichê da bibliotecária para saber que outras publicações gratuitas teriam.
Eu e Lily caminhamos pela lindíssima biblioteca e esquecemos do horário. Quando faltavam cinco minutos para fechar percebemos o movimento da bibliotecária se arrumando para sair. Decidimos voltar para pegar os pesados casacos que deixáramos no balcão da casacaria.
Saímos apressados sem perceber que tomáramos a direção errada e passamos por uma porta que travou atrás de nós. Tentamos uma, duas, três, treze vezes destravá-la, até perceber que estávamos presos numa sala depois da biblioteca. Batemos do lado de dentro da porta: help! Help! Ninguém acudiu.
Já com a biblioteca vazia, Lily disse: — pelo menos aqui é quentinho, caso tenhamos de pernoitar.
Eu olhei perto do teto e vi uma câmera. Fiz quase igual ao lobo na frente da porta da casa dos três porquinhos. Pulei, gritei por socorro, “soprei” como pude, mas a porta não abriu. Fiquei pensando se aquela câmera realmente funcionava…
Opa! A salvação! Vimos um telefone vermelho. Peguei e expliquei ao serviço de segurança que estávamos presos. Passei os códigos da sala: RC/ circ .68. Coisa complicada…
Quem atendeu do outro lado demorou um pouco a entender o que estava acontecendo e depois disse: — Olha estou buscando saber a localização de vocês, mas meus mapas arquitetônicos são antigos. Esperem uns 10 minutos que vou localizar onde estão e mandar um segurança buscá-los.
Lily fitou-me os olhos e disse parecer história de filme de terror. Sentou na escada e lá ficou. Fiquei em pé de cara no vidro da porta que dava para um grande corredor central da vazia biblioteca. Dez minutos depois um policial paramentado com cassetete, rádio e sua pistola chegou e abriu a porta. Seu sorriso me tranquilizou. Pedi as devidas desculpas e ele disse sentir muito e havia culpa também na administração do local, pois deviam ter colocado placa avisando que ali não é saída.
Eu amo ouvir e contar histórias. A única coisa que preocupou Lily foi o policial dizer ao final: — Vocês viram os fantasmas do parlamento?
Eu retruquei: — Que fantasmas? E ele disse: — Bem, sorte que não ficaram trancados aí, noite adentro. Não iriam gostar do que veriam e ouviriam…