Direto de Brasília-DF.
Acordei com o silêncio das primeiras horas da quarta-feira, na alva do dia. Sem sono zanzei pela casa, como zanza um turista no mercado das cobras em Marrakech, lá pelas terras da África, que por muito tempo os franceses dominaram.
Voltei a dormir e quando acordei tinha um pingado com um pão com ovo na cabeça. Não! Não literalmente! Não pense isto o leitor. O sabor é que estava passeando por minhas papilas gustativas.
Lembrei de um colega com quem há muito trabalhei, que costumava chamar a escovação dos dentes e lavagem do rosto matinal de “higiênica bucofacial”. Pois bem, asim o fiz, antes de seguir para uma padaria.
Em punho, meu livro “O Guarani” de José de Alencar, capa vermelha, dura, com as letras em dourado-ouro, como se o editor quisesse mesmo relembrar os tempos em que os portugueses e outros expropriadores vieram a esta terra brasilis, cujo nome foi herdado do pau-brasil, árvore capaz de atingir 30 metros de altura (um prédio de 10 andares) e um metro e meio de diâmetro de tronco.
Na padaria sentei-me ao balcão que dá para a janela (amo janelas) do segundo andar com vista para uma das lindas Quadras Comerciais de Brasília (batizadas oficialmente de “CLS”), pedi um pingado a um dos atendentes e uma omelete a outro. Abri o livro sobre o balcão e voltei à leitura: Peri, Cecília, Isabel, Loredano, Rui Soeiro, Bento Simões, ali reunidos às margens do rio paquequer, aflitos, um índio Goitacá da grande Nação Guarani, portugueses em maioria, e um Frade italiano, apóstata, todos esperando um iminente ataque dos Aimorés.
O atendente trouxe-me a omelete e ao primeiro pedaço que mordi percebi que houvera errado no pedido dos ingredientes. Gostaria de dizer que a omelete estava mais salgada que as águas do Mar Morto, mas, como nunca estive lá, vou deixar essa comparação para outra vez.
Colpa mia, signore! Pensei em italiano, mas voltei ao atendente com meu idioma Celta-Galaico-português e pedi desculpa por não haver sabido pedir.
Aproveitei para dizer que me contentaria, desta vez, com um pão com ovo. Ele aquiesceu e voltei à leitura, no balcão que distava cerca de dois metros de sua pequena cozinha.
Quando o atendente trouxe meu pão com ovo, e este se juntou ao meu café com leite (não tinha pagado ainda, mas já ousava pensar que tudo era meu, nesse contrato de confiança) vi aquele par perfeito (pra mim, só pra mim…): café com leite e pão com ovo, como goiabada com queijo, feijão com arroz, vida e poesia, sorrisos e lágrimas envolto em um abraço, angu com galinha caipira regado no caldo (ou será angu com rapadura???) e, por aí vai…
Não deixei de notar que o atendente olhou para meu livro como se fosse uma bíblia. Fez para mim uma cara relativamente solene, dessas que as pessoas fazem quando vêm alguém lendo livro religioso e, emitem sinais de um certo ar sacro, por imaginar que o leitor está na presença de algum deus, e, ele, coitado, a não passar de um pecador… Essas coisas hipócrito-religiosas que só existem na cabeça de quem pensa e, quem pensa, pensa que está na cabeça e nos olhos do resto do mundo.
Ele saiu em silêncio e em silêncio fiquei com minha terceira releitura de “O Guarani” de José de Alencar e suas frases maravilhosas como, por exemplo: “tu cearás comigo!”. Pensei o porquê de o pessoal do turismo não usar essa frase como mote. No Ceará, tu cearás comigo… Mas, também não sei, nem mesmo se os cearenses andam lendo o cearense…
Aliás, por falar em José de Alencar, que nada tem a ver com o falecido vice presidente, já contei em meu livro “Obstinação – O lema dos que vencem”, que é daquele o primeiro livro que li na vida. Contei, também, que isto aconteceu porque uma professora de língua portuguesa, lá na Escola Classe 03 da cidade satélite do Núcleo Bandeirante-DF, avisada pelo universo que minha mãe lavadeira de roupa e meu pai pedreiro, mal tinham a si, quanto mais posses, me presenteou com o livro “Iracema”, desse lindo escritor cearense.
Eu até hoje não entendo porque ao invés de me apaixonar por Iracema, a virgem dos lábios de mel, apaixonei-me por José de Alencar…
Até sinto uma certa devoção por Iracema, tanto que, depois que ganhei alguns centímetros à mais na estatura fui conhecer a cidade de Fortaleza, e a primeira coisa que fiz ao desembarcar e desfazer às malas no hotelzinho foi sair correndo feito doido de braços abertos ao vento, e ao chegar diante do mar, dar-lhe às costas para um abraço na estátua de bronze da índia, ali exposta com suas curvas voluptuosas na poluída, mas bela praia de Iracema.
– E o mar?!? Perguntou, um amigo ao ver-me apalpar o bronze.
-Ah… não quero responder essa pergunta… Sentimentos são individuais…
Em meio a tantos pensamentos, minhas papilas gustativas, conversaram comigo bem baixinho, dizendo hedonisticamente: – Escuta o que diz o incompreendido Epicuro!
Como pareci não compreender a mensagem, elas gritaram: – Escuta o que diz o incompreendido Epicuro!
Assim, lembrei-me do carpe diem, do “aproveite o momento” epicuriano, e degustei com prazer meu pingado com pão com ovo.
Terminada a refeição, fechei o livro que ali ao lado, aberto, me passava a sensação de tomar meu dejejum com meu escritor brasileiro favorito, naquele cascatejar de palavras suas derramadas sobre meu silêncio reverente, dirigi-me feliz ao caixa.
– A conta, por favor! E outra vez a vida enviou-me sinais de fumaça. Daqueles dos quais falo no capítulo 14 do livro Obstinação – O lema dos que vencem.
A moça do caixa olhou o livro preguiçosamente deitado sobre seu balcão e falou: – Esse livro é antigo, hem?!?
– Sim! Respondi.
– Puxa…, eu o li na escola faz muito, muito tempo! Parece que as pessoas não leem mais esse tipo de livro nas escolas, né?!?
– Sim! Parece que mal leem… Respondi com tristeza “lobatiana”, convicto que “quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê”.
– Acho que os próprios professores não leem, disse ela… E arrematou com outro pensamento forte:
– Esse é um país que só gosta de leitura em estatísticas…
Nossa conversa chamou a atenção de uma senhora que estava logo atrás, à espera de também pagar o que devia. Ela sentiu-se convidada à conversa e disse:
– Sou pedagoga. Já li o “Guarani” e os clássicos brasileiros. De fato, nas escolas não se leem mais esses livros, também porque os professores não os recomendam mais…
Eu, ali parado, apreciando aquela conversa entre quatro estranhos, o universo, a caixa, a pedagoga e eu, pensei: Ora, ora, ora… Se não leem José de Alencar, Machado de Assis, como esperar que…
Meus pensamentos se solidarizaram com outros tantos escritores “brasilienses”, “distrito federalenses” e brasileiros, que também lutam para serem lidos; que lutam para venderem um ou outro exemplar de seus livros tão duramente paridos no útero de seus cérebros, e quase sempre pedidos como “brindes”…
Escritores que lutam contra a grandeza pequena e a esperteza de editores que não os valoriza, e sequer pagam corretamente seus direitos autorais; contra os altos preços impostos pelo Mercado, e até contra os preços altos pedidos pelas livrarias, que cobram pelos lugares de colocação dos livros nas vitrines… “Quixotes”, nessa luta contra os moinhos de vento da ignorância e desprezo pela educação…
Como livro e música estão constantemente misturados em minha alma, saí dali com as palavras de Oswaldo Montenegro: “Eu insisto em cantar, diferente do que ouvi. Seja como for, recomeçar. Nada há, mas, há de vir…”
Despedi-me dos estranhos naquele “ninho” e segui, ainda conversando com o delicioso gosto de meu pingado com pão com ovo.
Segui para a rua e de lá, só Sivirino Com “I” e o Deus da Pedra do Navio, sabem para aonde…