Para entrar em uma residência e investigar a ocorrência de crime sem mandado judicial, policiais precisam obter a autorização do morador sem qualquer dúvida sobre o seu consentimento. Qualquer constrangimento imposto a ele, ainda que indireto e implícito, é suficiente para invalidar essa permissão.
Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça concedeu ordem em Habeas Corpus para anular as provas obtidas por policiais que invadiram e revistaram a casa de um homem que foi preso em flagrante na rua pelo crime de porte de arma de fogo.
Toda a ação foi motivada por uma denúncia anônima: haveria um homem andando armado na rua. Os policiais foram averiguar e fizeram a prisão em flagrante. Como o homem tinha antecedentes criminais pelo crime de tráfico de drogas, decidiram ir até a casa dele para averiguação.
Detido, sozinho e diante de dois policiais armados e com cães farejadores, o homem autorizou a entrada na casa, onde foram encontradas drogas. A ação resultou em condenação a pena de oito anos, nove meses e 20 dias de reclusão, que foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Ao STJ, a defesa argumentou que as provas decorrentes da invasão de domicílio são nulas porque não havia justa causa para a ação, nem consentimento válido do morador, conforme passou a exigir a jurisprudência mais recente da corte.
Por unanimidade de votos, a 6ª Turma deu razão à defesa. A nulidade das provas levou à absolvição da condenação pelo crime de tráfico de drogas. Restou a pena a cumprir pelo porte de arma de fogo, de dois anos de reclusão em regime inicial fechado por causa da reincidência do réu.
‘Autorizo’
Relator, o ministro Rogerio Schietti afastou a justa causa para a entrada na casa do suspeito porque o simples fato de ele ter antecedente por tráfico não é indício concreto de que, naquele momento específico, ele guardava drogas em sua residência.
“Admitir a validade desse fundamento para, isoladamente, autorizar essa diligência invasiva, implicaria, em última análise, permitir que todo indivíduo que um dia teve algum registro criminal na vida tenha seu lar diuturnamente vasculhado pelas forças policiais”, ponderou ele.
O consentimento do morador também foi considerado inválido. Para o ministro, um mínimo de vivência e de bom senso basta para indicar que não se mostra crível que alguém que guarde drogas em casa autorize policiais a entrar no local e fazer a busca com cães farejadores. Caberia aos policiais comprovar a autorização, o que não ocorreu no caso.
“Mesmo se ausente coação direta e explícita sobre o acusado, as circunstâncias de ele já haver sido preso em flagrante pelo porte da arma de fogo em via pública e estar detido, sozinho — sem a oportunidade de ser assistido por defesa técnica e sem mínimo esclarecimento sobre seus direitos —, diante de dois policiais armados, poderiam macular a validade de eventual consentimento (caso provado), em virtude da existência de um constrangimento ambiental/circunstancial.”
Constrangimento circunstancial
O voto do ministro Rogerio Schietti usa doutrina e jurisprudência americanas para abordar o conceito de constrangimento circunstancial. A ideia é de que o consentimento do morador seja inequívoco, específico e consciente, não contaminado por qualquer truculência ou coerção.
No Direito americano, isso se avalia a partir de elementos como o número de policiais na ação, a atitude deles para com o suspeito, ameaças e até horário da diligência. É o que a Suprema Corte americana chama de totality of circumstances — a totalidade das circunstâncias, ou o conjunto delas.
No Brasil, o tema do consentimento para o negócio jurídico está melhor destrinchado no âmbito do Direito Civil. O artigo 152 do Código Civil, por exemplo, ao tratar da coação como vício de consentimento, recomenda levar em conta “todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela”.
Por isso, não é possível ter como legítimo o consentimento do réu. Além disso, o ministro Schietti ainda apontou que a busca feita com cães farejadores representou verdadeira pesca probatória (fishing expedition). A varredura foi feita de maneira especulativa, sem nenhum indício de que haveria drogas no local.
“Diante de tais considerações, concluo que a descoberta a posteriori de uma situação de flagrante decorreu de ingresso ilícito na moradia do acusado, em violação da norma constitucional que consagra direito fundamental à inviolabilidade do domicílio, o que torna imprestável, no caso concreto, a prova ilicitamente obtida e, por conseguinte, todos os atos dela decorrentes.”
HC 762.932