Por:Sandra da Motta
Num cenário de inadimplência em desaceleração nos últimos meses, mas ainda elevada, desemprego alto e economia em recuperação lenta, o consumidor deve estar mais que alerta às oportunidades de acertar sua situação financeira e suas dívidas. Principalmente nos casos de dívidas bancárias, sobre as quais incidem juros altos, que podem levar rapidamente ao descontrole do orçamento e ao superendividamento. Pesquisa do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC) e da Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas (CNDL) mostra que o total de brasileiros em lista de devedores cresceu 2,78% em maio sobre igual mês de 2017, menos do que em março e abril, mas alcançando o total de 63,3 milhões de pessoas. O que poucos sabem é que, desde fevereiro, está em vigor um normativo da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) com novas regras para facilitar a renegociação de dívidas e os acordos junto às instituições.
Mudanças não só para inadimplentes
As regras valem tanto para quem já está inadimplente como para aqueles que, mesmo pagando em dia, estejam em situação de endividamento excessivo, com prioridade para os casos de atrasos causados por eventos especiais, como desemprego, morte, doença grave ou divórcio.
Atendimento especial para casos de doença ou desemprego
A premissa básica do normativo, segundo a Febraban, é acolher os pedidos de negociação dos clientes e consumidores, classificados como endividados passivos e ativos, assegurando atendimento a todos. O atendimento diferenciado e prioritário é para os que sofreram um “revés na vida” (superendividados passivos) que resultou na queda parcial ou total da capacidade de pagamento.
Normas foram criadas pelos próprios bancos
As regras foram aprovadas em agosto do ano passado pelo Conselho de Autorregulação Bancária da Febraban, com 180 dias para entrar em vigor completados em fevereiro, no normativo SARB018. Ou seja, não se trata de uma lei, mas de diretrizes elaboradas pelos próprios bancos, com as quais 18 instituições financeiras, ou 90% do setor, se comprometeram e devem respeitar.
Mais transparência sobre canais oferecidos e melhor acesso a informações
O objetivo é também ampliar a transparência sobre os canais oferecidos para negociação de dívidas e facilitar o acesso a informações sobre a evolução do débito e o prazo para retirada do nome do consumidor dos cadastros de inadimplentes, explica a área de Autorregulação da Febraban,.
Desta forma, diz a entidade, os bancos buscam enfrentar a questão do endividamento de maneira proativa e evitar que os conflitos cheguem aos órgãos de defesa do consumidor e à Justiça, e facilitar o resgate da capacidade financeira dos consumidores.
Políticas de monitoramento, orientação financeira e propostas de reestruturação
Pela normativa, os bancos têm de adotar políticas de monitoramento dos consumidores endividados, com a adoção de medidas ativas e preventivas para evitar situações mais sérias, além de ações voltadas a orientação financeira.
Devem ainda oferecer propostas específicas para reestruturação das dívidas, como parcelamentos, liquidações antecipadas ou outros produtos aplicáveis (permitindo, por exemplo, redução no valor da prestação com a cobrança de juros menores, troca de modalidade de crédito ou alongamento do prazo) — sempre respeitando a política de crédito de cada banco e a sustentabilidade do acordo.
Concentração das dívidas em um único débito com melhores condições
As regras estabelecem também que se buscará contemplar a totalidade dos débitos existentes sempre que possível. No entanto, quando isso não for possível, o cliente tem de receber todas as informações sobre quais dívidas são objeto da negociação e quais valores ou contratos permanecerão pendentes, com a indicação da forma e canais para negociá-los e informações sobre consequências do não pagamento.
Cliente não é obrigado a aceitar proposta do banco
Isso significa que deve existir a liberdade de negociação. Um exemplo do que pode ocorrer: o credor oferece uma proposta de negociação global, abrangendo todos os débitos do cliente. Entretanto, a pessoa não tem patrimônio ou condições para honrar o acordo. Nesse caso o consumidor, exercendo a liberdade de negociação, pode pleitear que o acordo recaia apenas sobre uma das dívidas (por exemplo, uma dívida com garantia, como o financiamento da casa própria). O banco terá de acolher a escolha do cliente.
Sem perdão, mas com novas bases de pagamento
As pessoas não devem, no entanto, esperar por perdão de dívidas. O que muda é que o consumidor passa a ter garantida, pelo normativo, de forma padronizada, a obrigação e o formato de uma nova proposta, em outras bases. No atendimento ativo, quando o banco procura o cliente, ou no receptivo, quando o cliente toma a iniciativa da negociação de dívidas, haverá recebimento de propostas apresentadas pelos consumidores, com respostas claras, precisas e objetivas para cada pedido.
Orientação é procurar o credor para solicitar negociação em caso de necessidade
O primeiro passo, segundo a Febraban, é a pessoa procurar o próprio credor. As instituições financeiras já têm canais específicos para pedidos de negociação, muitos deles inclusive em seus sites. Além dos canais disponibilizados pelos bancos, muitos pedidos de negociação também são formalizados pela plataforma do Ministério da Justiça (consumidor.gov.br), hoje também acessível por meio do próprio site da Febraban.
Ainda de acordo com a entidade, os bancos também têm ações ativas para efetuar a cobrança dos consumidores, mas é sempre importante que o consumidor, que possui maior capacidade de detectar e antecipar problemas em suas contas, procure o credor em caso de necessidade.
Para planejador, normas são avanço, mas é preciso acompanhar sua aplicação prática
O normativo traz pontos importantes para auxiliar as negociações entre bancos e famílias endividadas, avalia o planejador financeiro CFP® pela Planejar – Associação Brasileira de Planejadores Financeiros – Daniel Mazza. Especialmente a possibilidade de renegociação da dívida por consumidores adimplentes, bem como tratativas especiais em caso de doenças e desemprego — mas ainda é cedo para fazer maiores avaliações. “Precisamos esperar para avaliar o funcionamento e a aplicação prática desse normativo, mas, sem dúvida, é um avanço em um tema delicado.”
O especialista acredita que há sentido em os bancos fazerem acordo no caso dos adimplentes — situação que hoje ainda pouco se vê — pois, muitas vezes, o cliente fica com orçamento “estrangulado”, e é apenas questão de tempo até que ele se torne inadimplente. “Já quando o cliente se torna inadimplente, a complexidade na negociação aumenta consideravelmente”, ressalta. “No caso de clientes inadimplentes, o banco precisa renegociar para conseguir receber parte do que foi acordado, e o risco do não recebimento aumenta exponencialmente”, completa.
Consumidor deve refletir sobre as causas do endividamento
O cuidado principal que o consumidor deve tomar, segundo Mazza, é entender o que o colocou nesta situação de endividamento, buscando refletir primeiro sobre a causa, e não a consequência. “Digo isso pois de nada adianta fazer uma renegociação e, após poucos meses, estar nesta situação novamente”, destaca.
Ele acrescenta ainda que buscar alinhar o valor do pagamento mensal da dívida dentro do orçamento e mudar os comportamentos que levaram ao endividamento anterior são atitudes primordiais. “Também é fundamental no processo de renegociação buscar sempre uma redução nas taxas de juros e um possível alongamento do prazo”, completa Mazza.
Procon-SP: normativo tem mais pontos preocupantes do que qualidades
A coordenadora das áreas técnicas do Procon-SP, Renata Reis, afirma que, a princípio, o intuito do normativo SARB018 é positivo, mas destaca que ainda há muitas dúvidas e pontos em aberto sobre como isso funcionará na prática. “Por enquanto, vemos mais pontos preocupantes do que qualidades”, diz, acrescentando que não houve uma consulta pública prévia aos órgãos de defesa do consumidor.
Na avaliação de Renata, entre os pontos que preocupam estão desde saber como cada instituição financeira vai fazer o monitoramento preventivo, previsto na norma mas não detalhado (o que cada banco vai propor ao cliente? isso afetará o score dos clientes? poderá agilizar eventual cobrança judicial ou protesto?) até a abrangência efetiva das novas regras que, em sua visão, ficam mais restritas aos casos de desemprego, doença, morte ou divórcio. Mas sem contemplar os consumidores de forma mais geral, como nos casos de descontrole financeiro, por exemplo, que muitas vezes não são responsabilidade apenas do tomador de crédito.
Endividamento excessivo e falhas na análise de crédito
Para Renata, se houve endividamento excessivo, muitas vezes isso ocorreu também por não ter sido feita (pelo banco) uma boa análise de crédito. “Chegamos a ter casos (no Procon) de pessoas que ganhavam um salário mínimo e tinham mais de R$ 16 mil disponíveis, em vários cartões de crédito”, conta, observando que esse tipo de situação pode induzir o consumidor ao engano e ao alto endividamento.
Também não fica claro no normativo, lembra Renata, quais são os parâmetros para definir o que seria o endividamento excessivo do consumidor, uma das premissas para facilitar a renegociação. De acordo com informações da Febraban, não há um conceito legal no Brasil para caracterizar o superendividado. A doutrina nacional, diz a entidade, adota um padrão utilizado, por exemplo, na literatura francesa, em que o parâmetro é o comprometimento de 30% da renda do consumidor. E, com base nesse critério, a pessoa que tenha sua renda comprometida em percentual superior a esse pode ser considerada superendividada.
Falta de informação ainda é o grande problema
Para a coordenadora de áreas técnicas do Procon-SP, o consumidor tem enfrentado problemas para negociar suas dívidas não apenas por falta de canais ou de preparo das instituições financeiras nesse atendimento, mas também e principalmente por falta de informação.
Ela orienta os interessados em renegociar dívidas a procurar primeiro diretamente o banco ou os bancos credores e, se necessário, canais oferecidos pela Febraban, buscando informações claras sobre sua situação e alternativas. Renata lembra ainda ao consumidor que ele não tem apenas deveres, mas igualmente, direitos, e deve procurar também o Procon quando tiver dúvidas sobre as propostas oferecidas ou se acreditar que seus direitos não estão sendo garantidos.
O estado de São Paulo, diz Renata Reis, tem lei própria exigindo por exemplo que o consumidor que deve tem de ser informado claramente sobre o valor da dívida, quais os juros que estão sendo cobrados, bem como eventuais multas e correção monetária, e que as informações precisam chegar a cada perfil de devedor. Seja quando o banco faz diretamente a cobrança, quando resolve terceirizar o serviço para uma empresa de cobrança ou quando “vende” a dívida do cliente a terceiros.
Regras vão na direção correta, mas precisam ser melhor definidas
Na avaliação da economista-chefe do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), Marcela Kawauti, o normativo SARB018 é positivo, vai na direção correta, mas não é o ideal para aliviar a situação de inadimplência e endividamento excessivo dos consumidores. “É um primeiro passo, mas ainda está muito geral, vago”, diz. “É preciso ter informações mais claras do que cada banco pretende fazer de fato, para que as regras possam entrar em prática, sair do papel”, destaca.
Empréstimo para negativados é opção de 16% para limpar nome
Para a economista do SPC Brasil, um ponto relevante é que, caso os bancos melhorem efetivamente as condições de negociação junto ao consumidor, menos gente irá chegar ao ponto de recorrer a crédito ainda mais caro, que pode superar 700% ao ano (19% ao mês) para tentar “limpar o nome” e deixar a lista de inadimplentes.
Pesquisa do SPC/CNDL mostra que o chamado empréstimo para negativados, geralmente oferecido por financeiras, é alternativa que tem se popularizado e atraído muitos inadimplentes, como última saída para honrar compromissos em atraso. O levantamento, feito em todas as capitais e classes sociais, indica que 16% dos consumidores que estão ou estiveram com o CPF restrito nos últimos 12 meses admitem ter procurado instituições financeiras que prestam esse serviço, chegando a 21% entre os consumidores inadimplentes das classes A e B.
Dois em cada 10 endividados não conseguiram crédito em bancos convencionais
Três em cada dez consultados (29%) alegaram que era a única maneira que eles encontraram para quitar as dívidas. Outros 27% justificaram a rapidez do processo de limpar o nome, e 25% disseram que foram por este caminho por não terem conseguido obter crédito em bancos convencionais.
23% não pesquisaram taxas e condições; para 43%, situação financeira não foi solucionada
Marcela Kawauti também considera preocupante que, dentre os entrevistados, 23% admitem não terem pesquisado taxas de juros e demais características de outras opções de crédito antes de optarem pelo empréstimo para negativados. E o pior: em cada dez entrevistados, quatro (43%) admitem que a situação financeira não foi solucionada, sendo que 20% não conseguiram limpar o nome e ainda terão de pagar pelo empréstimo. “É importante que as pessoas busquem negociar e acertar suas dívidas, mas não entrando em uma bola de neve da qual dificilmente conseguirão sair”, diz a economista.
Disciplina para formar reserva e tentar evitar endividamento
Marcela ressalta que nem sempre o empréstimo é a saída para equacionar o orçamento. “Em qualquer classe social, é preciso que as pessoas busquem educação financeira e entendam que manter um padrão de vida adequado não é gastar tudo o que se ganha”, afirma, lembrando que é necessário ter disciplina para formar uma reserva financeira para emergências e tentar evitar o endividamento.
Mas o fato é que muitos consumidores acreditam que o empréstimo é o único caminho que resta para sair das dívidas e limpar o nome. Se realmente essa for a única opção, a recomendação, diz Marcela Kawauti, é trocar sempre a dívida atual por outra mais barata, pesquisando, comparando, buscando as melhores taxas e condições — e não trocar por operações que, até por serem mais arriscadas, cobram juros mais elevados.
Mostrar interesse em negociar e real capacidade de pagamento
Bruno Poljokan, diretor da plataforma de crédito online Just, acredita que o mais mais importante para obter bons resultados quando se fala em renegociação de débitos é o consumidor mostrar interesse em negociar a dívida e, se possível, trocar as mais caras por um crédito com taxa de juros mais baixa. “Mostrar a real capacidade de pagamento, inclusive à vista, se conseguir este segundo crédito mais barato, pode ser uma arma para negociar descontos e condições favoráveis de pagamento.”