A proposta de emenda à Constituição (PEC) que condiciona buscas e apreensões contra parlamentares ao aval da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal cria distinções injustificáveis para os congressistas e viola a sistemática do processo penal, de acordo com personalidades do Direito ouvidas pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Além disso, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que essas medidas não precisam de autorização das casas legislativas.
Após medidas do gênero serem decretadas contra os deputados federais bolsonaristas Carlos Jordy (PL-RJ) e Alexandre Ramagem (PL-RJ), a oposição começou a articular a aprovação de uma PEC que determina que mandados de busca e apreensão contra parlamentares somente podem ser cumpridos após aval das mesas diretoras da Câmara ou do Senado. A PEC, de iniciativa deputado Rodrigo Valadares (União Brasil-SE), tinha 55 das 171 assinaturas necessárias para ser apresentada até o último dia 26, conforme o site Poder 360.
Em 2016, o STF validou busca e apreensão contra gabinete de deputado federal feita no âmbito da finada “lava jato” (Agravo Regimental na Ação Cautelar 4.005). Na época, a Câmara argumentou que a iniciativa era ilegal porque foi feita sem autorização da Mesa Diretora da casa. No entanto, o Plenário do STF, por unanimidade, negou o recurso, seguindo o voto do relator da matéria, ministro Teori Zavascki (que morreu em 2017).
“Não ofende os princípios da separação e da harmonia entre os Poderes do Estado a decisão do STF que, em inquérito destinado a apurar ilícitos penais envolvendo deputado federal, determinou, sem prévia autorização da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados, a coleta de dados telemáticos nas dependências dessa Casa Legislativa. Além de não haver determinação constitucional nesse sentido, a prévia autorização poderia, no caso, comprometer a eficácia da medida cautelar pela especial circunstância de o presidente da Câmara, à época, estar ele próprio sendo investigado perante a Suprema Corte”, diz a ementa do voto de Zavascki.
Dois anos depois, o Supremo estabeleceu que medidas cautelares contra parlamentares exigem aval das casas legislativas caso impossibilitem, direta ou indiretamente, o exercício do mandato (Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.526). No mesmo caso, a corte fixou que, após a expedição do diploma, um congressista só pode ser preso em flagrante delito por crime inafiançável, sendo incabível prisão temporária ou preventiva.
Casos exemplares
Dois casos ocorridos nos últimos dez anos são emblemáticos quanto à possibilidade de prisão de parlamentar. Em 2021, o ministro do Supremo Alexandre de Moraes mandou prender em flagrante o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) por atentar contra o funcionamento do Judiciário e o Estado democrático de Direito. A detenção, que foi mantida pelo Plenário, ocorreu depois de Silveira publicar um vídeo com ataques e incitação de violência contra integrantes do tribunal.
Após o deputado ser condenado a oito anos e nove meses de reclusão pelos crimes de coação no curso do processo (artigo 344 do Código Penal) e tentativa de impedir o livre exercício dos poderes da União (artigo 23 da Lei de Segurança Nacional — Lei 7.170/1973), o então presidente Jair Bolsonaro (PL) lhe concedeu a graça. Contudo, o STF anulou o perdão por desvio de função.
Já em 2015, o senador Delcídio do Amaral (PT-MS) foi o primeiro parlamentar detido no exercício do mandato desde a promulgação da Constituição de 1988. Ele foi preso em flagrante por ordem de Teori Zavascki — decisão referendada pela 2ª Turma do Supremo — por tentar atrapalhar as investigações da “lava jato”.
De acordo com o ministro, o petista era acusado de integrar uma organização criminosa, um crime permanente que a jurisprudência do STF reconhece como autônomo. Por isso, o flagrante pode ser feito a qualquer tempo, afirmou Zavascki. Assim, a interpretação do antigo relator da “lava jato” no Supremo foi a de que o artigo 53 da Constituição não pode ser interpretado isoladamente, mas em conjunto com outros preceitos constitucionais.
O parágrafo 2º do artigo 53 estabelece o seguinte: “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”. O parágrafo 3º do dispositivo, por sua vez, permite que a Câmara ou o Senado sustem, por maioria, o andamento de ação penal contra parlamentar após o recebimento da denúncia pelo Supremo.
Já o artigo 55, parágrafo 2º, da Constituição determina que “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”.
No julgamento do “mensalão” (Ação Penal 470), foi estabelecido que o STF poderia determinar a perda do mandato de parlamentares, e as casas legislativas teriam apenas de cumprir a decisão. Pouco tempo depois, no entanto, a corte mudou de entendimento e declarou que cabe à Câmara ou ao Senado a decisão, mesmo em caso de condenação criminal (AP 565).
PEC é criticada
O jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, afirma que a PEC que vem sendo articulada pela oposição viola a sistemática do processo penal.
“De novo nos deparamos com um backlash à brasileira, que eu denomino de backlash sertanejo-universitário. É troco dado à tapa por um poder. Ruim para as relações institucionais. No caso, fazer uma PEC para resolver um problema pontual é inconstitucional por ausência de prognose e por violação da sistemática do processo penal. Não se pode avisar a casa do réu de que haverá mandado. Se isso passar, teremos dois tipos de brasileiros: o comum recebe a polícia sem saber; o nobre recebe a polícia só depois que o mandado passar por um filtro estamental. Temos de parar de brincar de fazer democracia. Um dia a Constituição pode revidar”, afirma Lenio.
Nessa mesma linha, Pedro Serrano, professor de Direito Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, avalia que não faz sentido que as buscas e apreensões tenham de ser autorizadas pelas mesas diretoras da Câmara ou do Senado. Isso porque são medidas investigatórias que devem ser discretas e sigilosas, sob risco de o investigado esconder provas.
“A PEC tem um caráter inconstitucional porque fixa uma impossibilidade de investigação do parlamentar mesmo para crimes comuns, que não são protegidos pela imunidade parlamentar. E coloca o congressista em uma situação de desigualdade perante os demais cidadãos, acima do bem e do mal, acima da lei”, opina Serrano.
Outro lado
O criminalista José Roberto Batochio, ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), diz que a PEC é coerente com as regras constitucionais. “Se o Congresso pode sustar ação penal após o recebimento da denúncia pelo STF, pode sustar medida cautelar decretada pelo Judiciário.”
“O Legislativo não pode continuar a ser a ‘Geni’ dos Três Poderes. A isonomia, o respeito e a observância das imunidades são fundamentais para a preservação da democracia. Independentemente do que tenham feito ou não os deputados alvo dessas providências, não fortalecem a democracia essas buscas e apreensões na sede do Legislativo. É contraproducente à manutenção das instituições”, opina o advogado.
Como deputado federal, Batochio redigiu a Emenda Constitucional 35/2001, que alterou a redação do artigo 53 da Constituição para estabelecer que um parlamentar só pode ser preso em flagrante por crime inafiançável.
Na época, o advogado criticou a decisão do Supremo de mandar prender Delcídio do Amaral, discordando do entendimento de que havia situação de flagrante permanente. “Trata-se de um conceito tão abstrato, tão fluido, tão aberto, que bastaria dizer que numa determinada situação operada por duas ou quatro pessoas existe situação de flagrante permanente e perpétua a todos.”
O criminalista ressaltou que o artigo 53, parágrafo 2º, da Constituição deixa claro que não cabe nenhum tipo de prisão processual contra deputados federais e senadores. Assim, esses parlamentares só podem ser detidos em caso de flagrante ou condenação transitada em julgado. Mas o flagrante só cabe se o infrator for apanhado no ato da consumação do delito ou quando o crime realmente for permanente, como o de sequestro, por exemplo, destacou Batochio.