A sociedade brasileira, seus representantes políticos e seu Poder Judiciário convivem nos dias atuais com um grande dilema: como fazer com que seu sistema prisional, que opera em reconhecido estado de coisas inconstitucional, ofereça a pacificação social que o Direito Penal promete. Na visão de Sebastião Reis Júnior, a correção de rumos passa pela necessidade de conhecer de fato como os reeducandos são tratados presídios adentro e as consequências disso.
A opinião é de um ex-advogado que, na função de consultor jurídico do Ministério da Integração Nacional, teve a oportunidade de viajar o país e conhecer as realidades mais distintas, que serviram para formar seu entendimento. Desde 2011, quando foi empossado ministro do STJ e passou a integrar uma das turmas criminais, buscou reproduzir essa experiência para saber melhor os impactos de seus julgamentos.
As visitas a presídios e entidades como a Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (Apacs) deram a Reis Júnior a certeza de que é um erro achar que prisão é solução e que os presos não voltarão ao convívio social. Ele entende que a falta de um tratamento digno a quem comete crimes é o que prejudica a ressocialização e potencializa a chance de retorno à criminalidade. E se diz incomodado pelo fato de magistrados, membros do Ministério Público e advogados não saberem disso.
“É muito bonito dizer que processo não tem cara, mas tem uma vida ali. O processo no papel já era frio, agora, digitalizado, é mais frio ainda. Daí a importância de visitar presídios, de conviver. O magistrado tem que sair da casinha dele, tem que viver a vida e sentir as coisas. Tem que conhecer a realidade do estado, porque são situações que aparecerão”, defendeu, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico.
As experiências no sistema penal brasileiro ainda permitiram ao ministro publicar o livro Translucida, obra que reúne fotos de sua autoria de pessoas transgênero recolhidas em estabelecimentos penais e reflexões sobre o tema, em formatos variados — contos, estudos técnicos e poemas. A obra foi lançada na sede do STJ em junho e confere visibilidade a uma parcela dessa população que, cedo ou tarde, retornará possivelmente mais marginalizada.
Para o ministro Sebastião, a noção quanto a essa realidade também pode permitir que juízes entendam melhor a necessidade de dar alguma coerência jurisprudencial aos julgados, o risco de isso aumentar ainda mais as tensões no sistema carcerário e até a forma de encarar temas profundamente impactados por moralismo, como o do juiz das garantias.
Leia a entrevista:
ConJur — Como surgiu a ideia do livro Translúcida?
Sebastião Reis Júnior — A ideia surgiu após uma visita às presas, há quatro anos, e também por influência do livro Ausência, da fotógrafa Nana Moraes, que mostrou o abandono dessas pessoas. Então procurei a direção do presídio e as presas para saber se elas estariam dispostas a participar do projeto, inicialmente previsto para ser um ensaio fotográfico.
ConJur — E quando essa ideia inicial mudou?
Sebastião Reis Júnior — Fizemos uma primeira apresentação das fotos no congresso internacional anual do IBCCrim. A coisa foi crescendo a partir daí e se transformou no livro. Mas eu queria algo diferente, que não fosse focado apenas em doutrina jurídica. Então também procurei pessoas de áreas distantes do Direito, como artistas plásticos e chargistas.
ConJur — Qual é sua avaliação do tratamento dado pelo Estado às presas transexuais?
Sebastião Reis Júnior — A visão que tenho é a de uma realidade que elas me passaram. No presídio que visitei, elas disseram se sentir respeitadas. Tinham direito, por exemplo, a ter cabelo comprido, sutiã, calcinha. Por outro lado, elas tinham que interromper o tratamento hormonal por falta de acompanhamento médico, o que é um problema muito sério. Mas, mesmo com a superlotação, o presídio era limpo, destoando do caos encontrado nas inspeções feitas pelo CNJ.
ConJur — Que é o que impera no sistema prisional, correto?
Sebastião Reis Júnior — Ouvi das presas que a gestão de outras unidades prisionais as tratam como homens, cortando seus cabelos e não garantindo uma ala diferenciada, apenas um conjunto de celas no da ala masculina.
ConJur — Qual é o motivo do descaso histórico com o sistema prisional?
Sebastião Reis Júnior — Nosso grande erro é achar que presídio é a solução, que os presos não voltarão para o convívio social. Enquanto continuarmos com essa ideia, não vamos evoluir. Essas pessoas vão ficar lá cinco, sete, dez anos e vão sair. E se não as tratarmos com dignidade e não dermos perspectiva de vida, a possibilidade de retorno ao crime é enorme. Isso porque elas estarão revoltadas e numa situação de vida muito pior do que aquela em que viviam quando foram encarceradas, pois a chance de arrumar emprego é mínima. Essa é a mentalidade que ainda prevalece numa parcela do Judiciário e em boa parte da sociedade. Na pandemia, com o isolamento, eu realmente achei que a sociedade ia pensar um pouco melhor.
ConJur — Mas piorou.
Sebastião Reis Júnior — Quando se está enclausurado em casa, com todos os confortos, já é enlouquecedor, imagina enjaulado. E o cenário piora quando se trata de uma mulher encarcerada, por conta do abandono familiar. Ao contrário do homem preso, que recebe visita da mãe, da companheira. Incomoda saber que boa parte da magistratura não tem noção disso. Há muitos juízes que visitaram presídios apenas quando eram estudantes, quando algum professor teve a sensibilidade de levá-los ao presídio.
ConJur — O desconhecimento é tamanho que ainda discutimos o fornecimento de absorventes em presídios.
Sebastião Reis Júnior — É algo inimaginável achar absorvente supérfluo. Se discutimos o acesso a absorventes fora da penitenciária, imagina intramuros. As pessoas criticam a preocupação do tribunal com direitos individuais porque não é com elas. O dia em que for, vão exigir todas as garantias constitucionais. Pessoas que até pouco tempo eram acusadores passaram a gritar por direito de defesa quando se viram no papel de acusados. Nós temos que mudar essa mentalidade de que não é preciso se preocupar com algo enquanto só acontece com o outro.
ConJur — Não é sintomático que a parte que não defende o bom trato do preso no sistema penitenciário não tenha relação com o tema, com o Direito Penal?
Sebastião Reis Júnior — É o reflexo do que as pessoas pensam. E o Judiciário é reflexo da nossa sociedade, assim como os outros Poderes. Se temos um Congresso, hoje, majoritariamente conservador é porque a sociedade, em sua maioria, é conservadora. Essa é a realidade e não tem como fugir.
ConJur — Como é o histórico das visitas do senhor a essas instituições?
Sebastião Reis Júnior — A primeira vez que fui foi essa, a convite do IDDD. Depois, tive a iniciativa de visitar novamente. Aí eu provoquei o pessoal de Minas Gerais para conhecer as Apacs. Sempre tinha ouvido falar, mas nunca tinha tido oportunidade de conhecer. Visitei as unidades de Santa Luzia, São João Del Rey e Belo Horizonte. No fim de junho, fui no conhecer o presídio feminino no Rio. Devo voltar no segundo semestre. Também fui à Papuda, aqui em Brasília, a todos os presídios de segurança máxima. Sempre que tem uma oportunidade, acho interessante conhecer e ver como é que funciona, até para ter uma ideia do que você está fazendo com a pessoa. Quero transformar isso numa rotina, fazendo essas visitas pelo menos uma ou duas vezes por semestre.
ConJur — Mas não há uma ‘maquiagem’ porque o ministro vai visitar?
Sebastião Reis Júnior — Você pode esconder algumas coisas, mas não tudo. É claro que o próprio preso pode ter medo de falar, mas é possível perceber, pelo quadro geral, qual é a realidade. Por exemplo, na Colmeia [Penitenciária Feminina do DF], quando visitamos, eles sortearam quais presas conversaríamos, para não dizer que eram pessoas previamente selecionadas por eles. E as conversas ocorriam sem a presença da gestão do presídio. Tivemos plena liberdade para conversar com as pessoas. Em outra visita, em São Paulo, quando passávamos pelas celas masculinas, vários presos reclamavam sobre problemas na execução penal, da qualidade da comida.
ConJur — Como o senhor avalia a importância de magistrados, integrantes do Ministério Público e advogados conhecerem a realidade prisional?
Sebastião Reis Júnior — É fundamental, até porque isso ajuda a entender que ali estão pessoas. Algumas erraram, outras não. Tem gente ali que nem sabe se errou, porque todo dia descobrimos erros judiciários. É muito bonito dizer que processo não tem cara, mas tem uma vida ali. O processo no papel já era frio, agora, digitalizado, é mais frio ainda. Daí a importância de visitar presídios, de conviver. O magistrado tem que sair da casinha dele, tem que viver a vida e sentir as coisas. Tem que conhecer a realidade do estado, porque são situações que aparecerão. Fui consultor jurídico do Ministério da Integração, o que me permitiu conhecer realidades de todo o Brasil; vi a dificuldade de prefeituras pequenas. Quando vou examinar um processo que questiona a responsabilidade de um prefeito, por exemplo, é preciso se atentar a essas nuances.
ConJur — Em uma palestra recente o senhor falou que as pessoas não entendem a gravidade que há em ter duas pessoas condenadas pelo mesmo crime com tratamento desigual. Qual é o risco?
Sebastião Reis Júnior — Isso vira o presídio [gíria usada no sistema prisional para falar de rebelião]. Imagine o efeito da diferença de tratamento, pelo Judiciário, para duas pessoas que cometeram o mesmo crime e dividem uma cela? O preso já está no limiar do limiar, então tudo é motivo para iniciar uma confusão dentro da penitenciária. A lei não prevê a uniformização, cada juiz aplica o que considera correto e o tribunal vai direcionando. O papel do Judiciário também é o de ter essa sensibilidade. Por um lado, a lei não pode ser muito rígida, porque isso promoveria injustiças e impediria a correção nos casos individuais. Por outro, é preciso ter uma coerência na aplicação da lei.
ConJur — A quantidade de recursos que chegam ao STJ influencia?
Sebastião Reis Júnior — Há dias em que chegam 40, 45 habeas corpus. Isso dificulta a análise das diversas questões, como aplicação do redutor no tráfico ou a quantidade de droga, sem haver discrepância. Não sei qual seria a solução, mas ajudaria se os tribunais firmarem o máximo possível de teses e fazerem valer esses entendimentos. A partir do momento que se diminui o volume processual, julgando uniformemente, o cenário melhora. Houve um julgamento recente aqui, sobre a necessidade de cumprir o início da pena em regime fechado, em que o juiz aplicou um dispositivo declarado inconstitucional pelo Supremo há 10 anos. Isso não é questão de interpretação, não é uma discussão subjetiva. Há casos onde a lei realmente garante espaço para interpretação, mas há outros em que as questões são objetivas. Nesses, é preciso respeitar os precedentes. Do contrário, o sistema não funciona, entra em colapso. Digo sempre que, para mim, já entrou em colapso.
ConJur — O julgamento sobre descriminalização do porte de drogas para consumo pode ajudar a reduzir o número de processos e a população carcerária?
Sebastião Reis Júnior — A questão é saber se a magistratura, o Ministério Público e a polícia não forçarão a barra para achar elementos que justifiquem a presença do tráfico. A tese vai ser firmada, mas teremos boa vontade para compreendê-la, para garantir o efeito almejado? É muito fácil fugir da jurisprudência.
ConJur — É o que acontece com a tese da invasão de domicílio.
Sebastião Reis Júnior — É o caso do “eu vi por cima do muro”, do “senti o cheiro de maconha”, entre outros argumentos. Antes, a invasão sem autorização judicial era justificada só com denúncia anônima. Quando perceberam que não funcionava mais, mudaram de argumento. Sempre haverá uma forma de tentar burlar a jurisprudência.
ConJur — Em 2016, o STF declarou o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário. Sete anos se passaram e nada mudou. O Estado ignorou a decisão?
Sebastião Reis Júnior — Não adianta fixar determinada linha de ação sem definir sanção. A verdade é essa. O Supremo fez o que podia, que era declarar e atestar a situação. Mas é preciso haver vontade do Estado, que é quem tem poder e condições para modificar esse estado de coisas inconstitucional. Porém, não dá voto reformar ou construir presídio e mudar política pública de combate à criminalidade.
ConJur — É o mesmo que ocorre com o juiz de garantias?
Sebastião Reis Júnior — Não entendo a AMB combatendo tanto o juízo de garantias, dizendo que vai aumentar gasto, que será difícil implementar. É a mesma rejeição que a magistratura teve com as audiências de custódia. Até acho que a lei que criou o juiz de garantias errou ao usar esse nome, pois juiz da instrução facilitaria a compreensão, e ao determinar prazo inviável de 90 dias para iniciar a implantação no Judiciário. Mas o ministro Dias Toffoli prorrogou esse prazo, além de a lei não impor a implantação imediata, respeitando a capacidade de cada estado. Mesmo assim, a AMB é contra, a Associação Nacional do Ministério Público é contra e a sociedade como um todo é contra por achar que vai ajudar bandido.
ConJur — Critica enquanto não é alvo da Justiça…
Sebastião Reis Júnior — Isso muda quando o cidadão passa a ser acusado de um crime, porque qualquer um de nós pode passar por isso, não precisa ter intenção de matar. Você pode estar dirigindo um carro, espirrar, fazer uma manobra brusca e matar alguém. Aí eu quero ver se não vai pedir por um juiz imparcial, por respeito ao direito de defesa.
ConJur — O juiz de garantias vai trazer algum resultado efetivo? O juiz de execução penal também foi criado para aumentar o distanciamento entre apenado e o magistrado que o condenou, mas pouco mudou.
Sebastião Reis Júnior — É um passo, até porque o Judiciário é conservador. A questão do juiz de garantias é você dar independência. Imagine um juiz determinar a prisão da pessoa, que fica anos encarcerada, e, quando vai julgar, percebe que deve absolver esse réu. Como que vai conviver com esse fato? Um outro magistrado fica muito mais livre para isso. Esse novo modelo só funcionará se houver uma mudança de mentalidade. Se o juiz pensar que uma decisão contrária vai desrespeitar o colega, não vai funcionar. Há juízos de execução penal que são maravilhosos. O Luiz Cláudio, por exemplo, que é o juiz da vara de execução em Belo Horizonte. Fui visitar as Apacs com ele e pude ver que o relacionamento dele com os presos é bom. Ele conhece os presos. Também existem bons no Amazonas.
ConJur — A questão do nome é sintomática, né?
Sebastião Reis Júnior — Naquele momento em que surgiu a ideia do juiz de garantias, durante o embate sobre a “lava jato”, criou-se a impressão de que essa nova figura jurídica teria o objetivo de soltar as pessoas. Ainda há pessoas falando isso. Vi uma declaração de um promotor de São Paulo falando que “vamos ter que soltar um bando de gente”. É o mesmo discurso usado quando se discutiu o fim da prisão em segunda instância. São falácias repetidas à exaustão e que as pessoas acreditam.
ConJur — O Estado brasileiro perdeu o controle das suas penitenciárias, do muro pra dentro?
Sebastião Reis Júnior — Em algumas situações, sim. E até que ponto há vontade do Estado em resolver esse problema? Não se soluciona isso sem investimento. A população é contra diminuir a população carcerária. Mas, sem essa redução, só resta construir presídios. Houve uma pesquisa que mostrou que quase 60% dos presídios brasileiros estão superlotados. Em alguns é possível controlar isso, mas em outros, não. É uma pessoa pendurada sobre a outra, o cara que chega mais novo vai dormir do lado do vaso.
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