Falar de moda e beleza no artigo de hoje parece insensível diante dos fatos cruéis ocorridos na noite do último Natal que falam por si só e deixam toda uma sociedade perplexa.
Me refiro aos três feminicídios ocorridos na última quinta-feira (24). O primeiro no Alto do Mandu, na Zona Norte de Recife, da trabalhadora da chamada “indústria da beleza” a cabeleireira Anna Paula Porfírio dos Santos, 45 anos, morta com dois tiros de revólver pelo seu marido um sargento reformado da Polícia Militar, de 53 anos, depois de 20 anos de casados deixando uma filha de 12 anos que testemunhou o crime. O segundo da jovem Thalia Ferraz, 23 anos, deficiente auditiva, que celebrava o Natal com parentes em sua casa em Jaraguá do Sul, Santa Catarina, quando recebeu pelo celular uma mensagem perguntando se ela gostava de surpresas e momentos depois um homem apareceu e a matou a tiros na frente de toda a sua família. E o terceiro e não menos cruel o da juíza do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, de 45 anos, morta a facadas pelo ex-marido, o engenheiro Paulo José Arronenzi, de 52 anos, na frente das três filhas que imploravam ao pai que parasse de esfaquear a mãe.
O feminicídio pode ser conceituado, em síntese, como o homicídio praticado contra a mulher pelo simples fato de ela ser mulher, ou seja, por repulsa, menosprezo ou discriminação pela sua condição feminina, fatores que também podem envolver violência sexual e violência doméstica ou familiar.
Segundo a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, cinco são as formas de violência doméstica e familiar. A primeira delas envolve a violência física que se resume em ações que ofendem a integridade ou a saúde do corpo da mulher como bater ou espancá-la, empurrá-la, atirar objetos em sua direção, sacudi-la, chutá-la, aperta-la, queimá-la, cortá-la ou feri-la.
O segundo tipo envolve a violência psicológica que consiste em ações que causam danos emocionais e diminui a autoestima da mulher, ou visam degradar ou controlar seu comportamento, crença e decisão mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir, ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e à autodeterminação.
A terceira forma de violência doméstica contra a mulher é a violência sexual que envolve ações que forçam a mulher a fazer, manter ou presenciar ato sexual sem que ela queira, por meio de força, ameaça ou constrangimento físico ou moral.
A quarta forma é a violência patrimonial consistente em ações que envolvam a retirada de dinheiro conquistado pela mulher com seu próprio trabalho, assim como a destruição de qualquer patrimônio seu, de bem pessoal ou instrumento profissional.
E por último a violência moral que se resume em ações que desonram a mulher diante da sociedade com mentiras ou ofensas ou com acusações públicas de ter praticado crime como o agressor xingá-la diante dos amigos, acusá-la de algo que não fez e falar coisas que não são verdades sobre ela para os outros.
Apesar da violência sexual ter crescido muito nos últimos anos a violência doméstica e familiar ainda é a principal causa de feminicídio no Brasil e no mundo segundo dados do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH).
Para se ter ideia do tamanho do problema de acordo com o Mapa da Violência Contra a Mulher a imprensa brasileira noticiou 14.796 casos de violência doméstica e familiar contra a mulher somente entre os meses de janeiro a novembro de 2018.
Em função do problema concluiu-se pela necessidade de criar um conjunto de instituições e serviços do Poder Público para atender as mulheres em situação de violência, assim como seus filhos, chamado Rede de Atendimento à Mulher.
Os serviços oferecidos pela Rede de Atendimento à Mulher contemplam as áreas da justiça, saúde, segurança pública e assistência social e cada área tem órgãos especializados em atendimentos para as vítimas de violência doméstica e familiar e os não especializados, mas que fazem os devidos encaminhamentos quando necessário.
Diversos são os órgãos que compõe essa rede de serviços e podem ser procurados pelas vítimas de violência doméstica e familiar como as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), as Delegacias de Defesa da Mulher (DDMs), Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Promotorias Especializadas/Núcleos de Gênero do Ministério Público, Centros de Referência de Atendimento à Mulher, Núcleos Especializados no Acolhimento e Atendimento às Mulheres Vítimas de Violência das Defensorias Públicas, Patrulhas/Rondas Maria da Penha, Casas-Abrigo e as Casas da Mulher Brasileira etc.
Além da Rede de Atendimento à Mulher também existe o serviço Ligue 180, no qual é possível realizar denúncias de violência contra a mulher todos os dias durante 24h, incluindo sábados, domingos e feriados.
O Ligue 180 é um serviço de utilidade pública destinado ao enfrentamento da violência contra a mulher que recebe denúncias de violações contra as mulheres, encaminha o conteúdo dos relatos aos órgãos competentes e monitora o andamento dos processos, além de orientar as mulheres em situação de violência, direcionando-as para os serviços especializados da rede de atendimento.
No Ligue 180, ainda é possível obter informações sobre os direitos da mulher, a legislação vigente sobre o tema e a rede de atendimento e acolhimento de mulheres em situação de vulnerabilidade.
As denúncias de violência contra a mulher também podem ser feitas pelo aplicativo Direitos Humanos Brasil e na página da Ouvidoria Nacional de Diretos Humanos (ONDH) do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), responsável pelo serviço, no qual foi disponibilizado um atendimento por chat e com acessibilidade para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Também é possível receber atendimento acessando o aplicativo Telegram, digitando na busca “DireitosHumanosBrasil”, e enviando mensagem para a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180.
As denúncias são gratuitas, anônimas e recebem um número de protocolo para que o denunciante possa acompanhar o andamento e é possível fazer a ligação para o Ligue 180 de qualquer lugar do Brasil e de mais de 16 países no exterior.
O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos divulgou que 2019, o Ligue 180 registrou um total de 1,3 milhão de atendimentos telefônicos e desse número 6,5% foram denúncias de violações contra a mulher, e somente nos primeiros quatro meses de 2020 houve um crescimento médio de 14,1% no número de denúncias feitas em relação ao mesmo período do ano passado.
E porque mesmo com a existência desses canais ainda temos tantos casos de violência doméstica e familiar? O primeiro ponto é que apesar da questão estar sempre presente nos noticiários essas informações não chegam para todas as pessoas e muitas mulheres ainda sofrem violência doméstica e familiar sem saberem como sair dessa situação seja por medo das ameaças do agressor, de mais violência ou da privação do contato com os filhos, por vergonha ou por falta de amparo da família e da sociedade.
Infelizmente ainda hoje acreditamos em mitos como “Em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”, “A violência doméstica é um problema privado ou familiar”, “Ela ‘pediu’ para ser agredida”, “Se ela não gostasse, já teria abandonado o relacionamento” e “Se a mulher abandonasse o agressor, a situação de violência acabaria” (Cartilha Enfrentando a Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, 2020).
Temos que levar em conta que é difícil romper um relacionamento de anos e anos com quem muitas vezes a vítima de violência doméstica e familiar tem filhos e laços de dependência emocional fortes, ou seja, romper com o ciclo da violência não é tarefa fácil.
De acordo com a Cartilha Enfrentando a Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, elaborada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos “o ciclo da violência é a forma como a agressão se manifesta em algumas das relações abusivas” isso porque o ciclo não ocorre em todas as relações. Ainda segundo a cartilha esse ciclo é composto pela fase da tensão, quando começam os momentos de raiva, insultos e ameaças, deixando o relacionamento instável, fase da agressão, quando o agressor se descontrola e explode violentamente, liberando a tensão acumulada e a fase da lua de mel na qual o agressor pede perdão e tenta mostrar arrependimento, prometendo mudar suas ações. O ciclo da violência se repete por diversas vezes durante o relacionamento abusivo, diminuindo o espaço entre as agressões e aumentando a sua intensidade que se tornam sempre mais violentas.
Por outro lado, ainda temos a dependência econômica e financeira, haja vista que não podemos nos esquecer que ainda hoje muitas mulheres dependem dos agressores para se manterem e aos seus filhos seja pela proibição do agressor de que ela desempenhe alguma atividade que lhe de algum dinheiro ou por falta de estudo ou de alguma qualificação profissional.
Por isso o primeiro passo a ser dado para acabar com o ciclo da violência doméstica e familiar é o emponderamento feminino através do investimento em qualificação profissional das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar para que não se sujeitem mais a essa dependência econômica e financeira do agressor.
Ora hoje a indústria da moda constitui-se essencialmente de mão de obra feminina com participação, somente nos anos de 2002 e 2018, de 56,4% e 56,8% nas atividades industriais e 67,5% e 70,2% nas atividades comerciais de acordo com dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), que consiste em um relatório de informações socioeconômicas, antes solicitado pelo extinto Ministério do Trabalho e Emprego, e atualmente pelo Ministério da Economia, às pessoas jurídicas inscritas no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) e outros empregadores anualmente sobre os seus empregados.
Isso sem contar a indústria da beleza avaliada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 2018, em 532 bilhões de dólares, cuja estimativa é de que em 2023 esse valor chegue a 805 bilhões de dólares, que também absorve a maioria da força de trabalho feminina em suas inúmeras atividades como cabeleireiras, esteticistas, massagistas, manicures, pedicures, depiladoras, maquiadoras etc.
Evidente que só a qualificação profissional das vítimas de violência doméstica e familiar não basta, como não bastou no caso da cabeleireira Anna Paula Porfírio dos Santos e da juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi, ambas mencionadas no início desse artigo, a primeira trabalhadora da “indústria da beleza” e a segunda membro do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, porque a questão é muito mais complexa e exige acima de tudo elaboração de políticas públicas sérias voltadas para um responsável enfrentamento da violência doméstica e familiar e uma mudança de postura da nossa sociedade.