Por Sérgio Rodas
A mentalidade de “brigar até o fim” em processos tributários era danosa à Fazenda e aos contribuintes. Ela, no entanto, foi se enfraquecendo com o tempo, e a cultura da busca pelo consenso vem ganhando força. O uso de métodos como mediação e transação tem sido ampliado em âmbito fiscal, e os benefícios são claros: aumento da arrecadação e da situação de conformidade de pessoas e empresas. É o que sustenta Maurício Faro, presidente da Comissão Especial de Assuntos Tributários (Ceat) da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil e sócio do escritório Barbosa, Müssnich, Aragão.
Por iniciativa da Ceat, abraçada pelo presidente da OAB-RJ, Luciano Bandeira, foi criada a Lei estadual 9.789/2022, que estabelece que a contagem dos prazos processuais administrativos deve correr em dias úteis, além de suspender a tramitação desses processos durante o recesso do fim de ano. Para Faro, foi uma medida muito importante para a advocacia e para o exercício da defesa de contribuintes.
Recentemente, uma comissão de juristas apresentou propostas de atualização do Código Tributário Nacional e da legislação que trata do processo administrativo na administração pública (Lei 9.784/1999). A Ceat participou do processo, enviando sugestões. As medidas sugeridas constituem avanços, avalia o advogado, mas ele diz que a Comissão Especial de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB, presidida por Misabel Derzi, e as comissões das seccionais devem lutar pela conversão das propostas em lei, tanto no âmbito federal quanto nos estados.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Maurício Faro também afirmou que o Supremo Tribunal Federal vem tomando medidas importantes em temas tributários, mas ele diz ser preciso estabelecer critérios mais coerentes de modulação dos efeitos.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Por iniciativa da Ceat da OAB-RJ, foi publicada a Lei estadual 9.789/2022, que estabelece parâmetros para a contagem dos prazos processuais administrativos. Como essa lei afeta os advogados?
Maurício Faro — A Ceat é composta por advogados de todos os tipos. Há sócios de grandes escritórios, advogados internos de empresas, procuradores da Fazenda Nacional, do estado do Rio, do município. Isso faz com que a comissão esteja muito atenta aos problemas e desafios que a advocacia tributária enfrenta. Um desses desafios aqui era a tramitação de processos administrativos no fim do ano. Era o caos, porque as Receitas — federal, estadual e municipal — têm prazo decadencial para fazer os lançamentos tributários. Se o sujeito não fizer até 31 de dezembro, ele perde o exercício todo para determinados tributos. Assim, o fim de ano era uma tremenda correria, com os autos chegando, e os advogados em pânico, porque não podiam entrar em recesso. E ainda tinham um desafio adicional, já que muitas empresas têm férias coletivas no período. Conversando com colegas, chegamos à conclusão de que seria interessante pedir ao Fisco para suspender o prazo e retomá-lo no início de janeiro. Fizemos isso, e a resposta das procuradorias, da advocacia pública, foi muito positivo desde o início. O desafio foi com as secretarias das Receitas.
O Código de Processo Civil de 2015 estabeleceu expressamente a suspensão dos prazos processuais durante o recesso de fim de ano e a contagem em dias úteis. Antes do CPC, a nossa demanda era apenas suspender os prazos no fim do ano. Depois que a norma entrou em vigor, pensamos que também poderíamos pedir a contagem dos prazos em dias úteis para processos administrativos. Passamos a insistir nisso e conseguimos o apoio da Procuradoria-Geral do Estado do Rio. O procurador-geral, Bruno Dubeux, encampou a ideia e oficiou a Secretaria estadual da Casa Civil. O governador Cláudio Castro (PL) enviou projeto de lei, e a Assembleia Legislativa do Rio aprovou.
Foi uma medida muito importante para a advocacia. O processo administrativo tributário é mais do que uma ferramenta importante de revisão dos lançamentos, de exercício de defesa dos contribuintes. Ele é um instrumento essencial de entrega da prestação jurisdicional, porque desafoga o Judiciário. A jurisdição administrativa é mais limitada, é certo. Por exemplo, o julgador administrativo não pode afastar uma norma concreta, como um juiz pode, se entender que ela é inconstitucional. Em compensação, o julgador administrativo, até pela experiência de auditor e de advogado tributarista, tem uma expertise que permite analisar documentos e questões materiais e contábeis com mais profundidade do que o Judiciário. Então é inteligente permitir que os dois sistemas dialoguem.
ConJur — Recentemente, uma comissão de juristas apresentou propostas (que tiveram a participação da Ceat-OAB-RJ) de atualização do Código Tributário Nacional e da legislação que trata do processo administrativo na administração pública (Lei 9.784/1999). Como avalia essas propostas?
Maurício Faro — Há muitos avanços nelas. O trabalho da comissão foi muito competente, os membros eram muito qualificados, com experiência prática e acadêmica. Ficamos muito satisfeitos com os trabalhos. Agora há o desafio legislativo, por isso nós defendemos uma atuação das comissões de Direito Tributário das seccionais da OAB, pois o quanto mais se conseguir avançar nos estados, menor é o desafio da norma geral. Há pontos que podem ser alterados por leis estaduais.
ConJur — Passados alguns anos da ação denominada de “zelotes”, como o senhor avalia o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) hoje? Está melhor ou pior do que antes?
Maurício Faro — O Carf continua sendo o órgão técnico que sempre foi. Há profissionais excelentes, tanto no âmbito dos julgadores da Receita Federal quanto no do contribuinte. Há um rito próprio do contencioso administrativo que é baseado no princípio da informalidade, que permite uma participação muito ativa do advogado e do procurador para contribuir com a solução do julgamento. Agora, depois do que aconteceu, houve uma mudança abrupta substancial de composição (com a proibição de conselheiros dos contribuintes advogarem), e esse tipo de coisa costuma impactar a jurisprudência. Houve um primeiro momento de posições mais pró-Fazenda. Porém, mesmo antes da criação da lei do voto de qualidade invertido, a jurisprudência já havia ficado mais equilibrada. E o Carf é espetacular na análise de provas e de fatos, até pela experiência dos julgadores. No tempo que eu fiquei lá, muitas das questões eram resolvidas com a experiência dos representantes da Fazenda, porque eles viviam aquilo no dia a dia.
ConJur — A proibição de os representantes dos contribuintes advogarem foi positiva?
Maurício Faro — Foi uma escolha, e acho que não cabe a nós ficar questionando o órgão. Foi uma decisão que gerou uma modificação profunda na composição do Carf e que permitiu que outros profissionais assumissem posições no órgão e mostrassem a sua qualidade, que é o que vemos hoje nos conselheiros. Há profissionais muito gabaritados que certamente tiveram esse reconhecimento em razão de manifestações de votos que foram proferidos.
ConJur — O estado do Rio de Janeiro vem ampliando as possibilidades de uso de meios alternativos de resolução de conflitos em matéria tributária. Como avalia esse cenário?
Maurício Faro — Avalio muito positivamente. É perceptível para quem milita no contencioso tributário a mudança de mentalidade. Essa mudança aconteceu não somente no âmbito público, ou seja, das secretarias de Receita Federal, estadual, municipal e procuradorias, mas também na advocacia privada. No passado não tão distante, era muito forte a cultura do litígio. A mentalidade era de “brigar até o fim”. Isso foi mudando com o tempo. Foi-se criando um consenso de que aquele modelo precisava de aperfeiçoamento, porque gerava uma série de processos, que não eram, muitas vezes, bons nem para Fazenda, nem para o contribuinte. Às vezes, o contribuinte tinha um auto de infração que estava forçando a barra, cobrando um débito que já tinha jurisprudência em sentido contrário, e a procuradoria insistindo em recorrer. Enquanto não termina o caso, não se pode levantar os valores. É muito ruim para a Fazenda também. E, muitas vezes, o contribuinte esticava a corda em uma discussão que era perdida.
Essa sensação, somada à mudança geracional dos advogados e dos procuradores, levou à percepção da necessidade da busca de consenso. Conversando com colegas das procuradorias, da Receita Federal e das secretarias de Fazenda, especificamente do Rio de Janeiro, percebe-se uma capacidade muito maior para o diálogo, que não existia antes. E aí, consequentemente, o diálogo traz a busca de soluções alternativas. Há o exemplo da possibilidade de transação no âmbito da Fazenda Nacional. Isso tem sido um sucesso. Além de aumentar a arrecadação, há economia de tempo. Com menos processos, os procuradores têm mais tempo para trabalhar no que é realmente interessante.
O grande desafio hoje é separar os bons contribuintes dos maus contribuintes. E é preciso premiar os bons contribuintes. Já existe uma tendência nesse sentido. E é necessário agir com firmeza contra o contribuinte que, de fato, usa a inadimplência como subterfúgio.
A Procuradoria da Fazenda Nacional e a PGE-RJ são entusiastas da mediação e da transação tributária. Existe um projeto de lei na Casa Civil que cria a transação no âmbito da legislação do Rio de Janeiro. A proposta conta com o apoio da advocacia privada e da pública. O secretário da Receita do Rio, Leonardo Lobo, tem se comprometido a dialogar com a classe em buscas de soluções. Ele apoiou o projeto de lei do prazo em dias úteis, nos recebeu para conversar sobre pedidos de melhorias dos processos administrativos. Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio declarou a constitucionalidade da lei que tributa o marketplace. E, em vez de sair aplicando a norma e cobrando os contribuintes, o estado convocou uma audiência pública com diversas entidades, como a OAB. Esse é o caminho.
ConJur — Que medidas deveriam constar de uma reforma tributária?
Maurício Faro — Honestamente, não precisamos de uma reforma tributária. Se fizéssemos duas alterações infraconstitucionais no ICMS e no PIS/Cofins, já reduziríamos bastante a litigiosidade no contencioso tributário. Alterando as normas de ICMS e de PIS/Cofins e permitindo a tomada de crédito full, ou seja, todo crédito é bom, reduz-se o litígio. O grande desafio quanto ao PIS/Cofins é definir o que é essencialidade dentro da atividade econômica exercida pelo contribuinte. O Superior Tribunal de Justiça foi muito bem ao afastar as normativas que a Receita tinha criado para tentar trazer para uma regra de ICMS e IPI que era bastante restritiva. Mas ainda há um casuísmo. Qual é o desafio? A economia é muito dinâmica. Aí surge uma atividade nova, por exemplo. O que é essencial para essa atividade? Na dúvida, o sujeito toma um crédito, tem o auto de infração, se defende, faz o consumo de consulta, a jurisprudência do conselho oscila, e ele vai judicializar, “brigar até o fim”.
ICMS é a mesma coisa. Então, penso que não é preciso termos uma reforma tributária. Com alterações pontuais, sobretudo no PIS/Cofins e no ICMS, é possível reduzir substancialmente as discussões tributárias existentes hoje.
ConJur — Como avalia a recente jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária?
Maurício Faro — Durante a epidemia da Covid-19, nós vivemos um momento inédito de produtividade. Acho que o Supremo nunca julgou tantos temas tão rapidamente. Mas nem tudo que é rápido é bom, e penso que precisávamos de mais profundidade em algumas discussões.
O excesso de julgamentos virtuais prejudicou o debate e a disposição de discutir alguns pontos. Eu vejo com preocupação, às vezes, a falta de coerência entre os julgados. Por exemplo, a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins passou, mas o ICMS e o ISS na base da CPRB não passou. Penso que a premissa é a mesma, que não se pode tributar tributo.
Um ponto que preocupa muito, sobretudo nesses casos, é o exagero das modulações, sobretudo em favor da Fazenda. É claro que é preciso considerar a questão do mínimo possível. Quer dizer, não se pode quebrar os entes federativos. Mas as procuradorias exageraram no argumento consequencialista de quebra da União, dos estados, especialmente devido à epidemia. Por exemplo, o Supremo decidiu que as alíquotas de ICMS mais altas para telecomunicações e energia são inconstitucionais, mas o Supremo modulou a decisão. Veja especificamente o caso do Rio de Janeiro, que situação curiosa. O Órgão Especial do Tribunal de Justiça decidiu, em 2007, que a lei era inconstitucional. Desde então, o estado do Rio vinha questionando a decisão no Supremo, com o fundamento de que iria haver um rombo nos cofres públicos. Quinze anos depois, o STF repetiu o que o TJ-RJ havia dito: que as alíquotas mais elevadas para telecomunicações e energia eram inconstitucionais. Aí o estado insistiu que era preciso modular a decisão para estabelecer que ela só deveria valer para quem houvesse entrado com ação para questionar a medida. Esse tipo de decisão premia a “inconstitucionalidade útil”. Quer dizer, o ente público, mesmo ciente do vício da norma, da ilegalidade, da inconstitucionalidade, prefere insistir porque continua arrecadando, já que o contribuinte não pode deixar de pagar. Os critérios temporais das modulações também não são claros e coerentes. E não há transparência sobre os dados usados para fundamentar tais modulações. Embora o discurso seja pela redução de litígios, essas posturas acabam incentivando a litigiosidade.
ConJur — Deveria haver, então, uma maior padronização nas modulações de decisões tributárias?
Maurício Faro — Sim. E nós acompanhamos com muita expectativa o desfecho do pedido de modulação do terço de férias, porque já existia um repetitivo favorável ao contribuinte, diversos contribuintes tiveram seus pedidos transitados em julgado. Isso é um ponto preocupante para os contribuintes, porque a boa-fé do contribuinte é do contribuinte, não é do Estado. O Estado não pode suscitar a proteção da confiança porque ele é o ente legislador. E o contribuinte pode. No modelo de hoje, acabamos premiando o litigante e penalizando o bom contribuinte, que paga os tributos. Porque o sujeito que paga e acredita que não tem ação não tem direito de restituição, segundo esse critério de modulação.
ConJur — Fora esse do terço de férias, que outros julgamentos tributários importantes estão na pauta do STF?
Maurício Faro — A pauta do Supremo como um todo é importante. A Corte está analisando a questão da coisa julgada, que é um dos temas mais relevantes de todos, que trouxe uma perspectiva de mitigação da coisa julgada em face de decisão superveniente do Supremo. Também há, por exemplo, a conclusão da ADC 49. O Supremo julgou a ADC 49, disse que era inconstitucional a incidência do ICMS nas transferências entre estabelecimentos de uma mesma empresa. Porém, o STF não decidiu o que fazer com o crédito, por exemplo. Nós atuamos nesse caso e apresentamos um parecer da consultoria Tendências que fala do impacto disso para os grandes varejistas. A proposta inicial do ministro Edson Fachin, quando o mérito do julgamento foi concluído, em 2021, era que se modulasse para janeiro de 2022. Nós já estamos em novembro de 2022 e o julgamento ainda não foi concluído. É algo preocupante.
E há uma série de outras questões no STF, como o regime do ICMS-Difal instituído com a Lei Complementar 190/2022 e os casos derivados da exclusão do ICMS da base do PIS/Cofins. Também há os casos de planejamento tributário analisados pelo Judiciário.
A proliferação de parcelamentos especiais mitigou a análise de determinados temas pelo Judiciário. Então, por exemplo, até pela qualidade e pela profundidade dos julgamentos do Carf, o contribuinte discutia o tema no conselho. Se ganhasse, ganhava. Se perdesse, era raro judicializar, pois ele entrava no Refis. O cenário mudou um pouco. Hoje há diversos casos de ágio, de incorporação de ações, de stock options, de temas de casa e separa e de redução de capital que estão sendo judicializados. São temas que não vinham sendo recorrentemente enfrentados pelo Judiciário. E ainda não é possível extrair uma diretriz definitiva de como o Judiciário vai enfrentar isso. Adicionada a esse desafio há a Emenda Constitucional da Relevância (EC 125/2022), que criou o filtro da relevância para os recursos especiais, o que torna ainda mais importantes os julgamentos nos tribunais.
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