No último dia 6, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou a Costa Rica por perseguir dois jornalistas por meio do seu sistema judiciário. Rodrigo Mudrovitsch, único juiz brasileiro da Corte IDH, afirmou em seu voto que os atos legislativos ou judiciais domésticos, no que se refere à liberdade de imprensa, merecem deferência “até o delicado ponto em que passem, lenientemente, a permitir a disseminação de um generalizado cenário intimidador à circulação livre de informações de interesse público, totalmente refratário aos fins e ao espírito da tutela das liberdades discursivas proclamadas ostensivamente pela Convenção (Americana sobre Direitos Humanos)“.
A decisão foi importante porque abriu um precedente que pode ser replicado no Brasil, com base na Recomendação 123 do Conselho Nacional de Justiça, que sugere a adoção pelo país da jurisprudência da Corte IDH. Por essa razão, a revista eletrônica Consultor Jurídico ouviu advogados especializados em liberdade de expressão e direitos humanos sobre a possibilidade. A conclusão foi que, ainda que seja necessário observar as circunstâncias de cada situação, a decisão pode ajudar a dar força à liberdade de imprensa no Brasil.
Para Rodrigo Meyer Bornholdt, advogado e autor dos livros Liberdade de expressão e Direito à honra: uma nova abordagem no Direito brasileiro, a decisão pode servir como precedente no Brasil, sim, mas é preciso verificar sempre as particularidades de cada caso. “Não dá para dizer com base nessa decisão que qualquer tipo de violação do direito à honra no conflito com a liberdade de expressão é indevido, porque a legislação brasileira também protege direitos de personalidade.”
Bornholdt entende que em situações em que há interesse público, como no caso julgado pela Corte IDH, o direito à liberdade de expressão tem de prevalecer. “Um aspecto interessante da decisão que poderia inspirar a nossa legislação é uma tipificação mais minuciosa dos crimes contra a honra.”
No caso julgado em Brasília pela Corte IDH, os jornalistas Ronald Moya Chacón e Freddy Parrales Chaves publicaram em 2005 um texto que acusava chefes de polícia de facilitar o tráfico de bebidas alcoólicas na fronteira entre a Costa Rica e o Panamá. A legislação costarriquenha prevê que “insultos pela imprensa” são crimes tipificados nos artigos 145 do Código Penal e 7 da Lei de Imprensa, em virtude dos princípios da estrita legalidade penal e do direito à liberdade de expressão, além da ausência de parâmetros para prever condutas proibidas e suas consequências.
O advogado e professor associado de Direito Internacional, Novas Tecnologias e Direito Comparado da UFMG Fabrício Polido acredita que a decisão é uma das mais importantes dos últimos anos e servirá como precedente na defesa de jornalistas brasileiros.
“A decisão da Corte IDH em Moya e Parrales vs. Costa Rica levanta a possibilidade — na esteira da Recomendação 123 do CNJ — de que as decisões do Judiciário brasileiro em primeira e segunda instâncias sejam também submetidas a maior controle além de recurso possível a tribunais superiores, ao menos nos casos possíveis de reclamações constitucionais e outras espécies de competência do próprio STJ.”
Recomendação 123
O advogado Lucas Albuquerque Aguiar, coordenador da filial de Brasília do escritório Davi Tangerino Advogados, explica que a Constituição estabelece a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais e que o Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos, portanto, as decisões da Corte IDH são fonte jurisprudencial para o Judiciário brasileiro.
Segundo ele — que foi advogado visitante da International Criminal Court (ICC) —, a Recomendação 123 do CNJ só deixou isso mais claro.
“O ideal, portanto, é que o Estado brasileiro siga a mesma lógica utilizada pela Corte IDH no julgamento de situações análogas, a fim de coibir e reparar danos causados pela responsabilização desproporcional da imprensa pela publicação de notícias. A esse respeito, vale lembrar que o STF declarou a antiga Lei de Imprensa, editada em 1967, inconstitucional justamente por cercear de maneira incompatível com a ordem democrática atual a liberdade de expressão.”
Márcia Negrisoli, mestra em Direito Constitucional, segue a mesma linha: “A Resolução 123 do CNJ recomenda aos órgãos do Poder Judiciário brasileiro a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”.
Devagar com o andor
A constitucionalista Roberta de Oliveira, no entanto, lembra que, ainda que o CNJ indique a utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, trata-se apenas de uma recomendação. Ela explica que, para que a decisão tenha impacto no Judiciário brasileiro, é preciso haver uma série de decisões reiteradas nesse sentido.
“A utilização da jurisprudência da Corte IDH de acordo com a teoria geral do Direito poderá ocorrer na falta de norma interna que possa solucionar o caso concreto de maneira eficaz. Dessa forma, não basta fazer uma leitura rasa da decisão da IDH e da resolução do CNJ. Tem de ser feito um estudo de viabilidade, ou seja, de convencionalidade diante do caso concreto.”
Pedro Simões, coordenador da equipe de Penal Empresarial e Compliance do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra, lembra que o controle de convencionalidade pode ser feito por qualquer juiz, de forma difusa, e pelo Supremo Tribunal Federal, de forma concentrada.
“Pela Resolução 123 dá-se a entender que todo o Judiciário brasileiro tem o dever de levar em consideração a jurisprudência da Corte IDH. Na prática, se um jornalista foi acusado de crime contra a honra ou violação de algum crime da Lei de Imprensa, ele pode usar a decisão em sua defesa e, se condenado, fundamentar um recurso com base na jurisprudência.”
https://www.conjur.com.br/2022-set-15/decisao-corte-idh-reforcar-liberdade-imprensa-brasil