Direto de Brasília-DF.
JV: Em um Estado democrático de direito, os gestores públicos só podem fazer o que as leis determinam, a fim de evitar que ajam por conta própria, e sem qualquer planejamento. Neste sentido, o Congresso Nacional Brasileiro já aprovou uma legislação específica para saneamento básico?
Ana Salett Marques Gulli: O Marco Legal do Saneamento é a lei nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007, que representou, à época, um avanço para o setor, estabelecendo princípios fundamentais para prestação dos serviços, conceitos, definições, bem como diretrizes e objetivos da Política Federal do Saneamento.
Recentemente esta lei foi alterada pela Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, amplamente divulgada como novo marco legal do saneamento.
JV: Há uma diferença enorme em divulgar algo como “novo” e essa coisa ser realmente, o “novo” que se divulga. A Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, é, de fato, um “novo marco legal do saneamento”, ou é só um “remendo” nas leis passadas?
Ana Salett Marques Gulli: A Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020 trouxe relevantes alterações para o marco legal do saneamento, todavia, na minha avaliação, não necessariamente significa representa um “novo marco”.
JV: Quais são, em seu sentir, os principais pontos favoráveis que a Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, traz?
Ana Salett Marques Gulli: Destaco como ponto favorável a definição do titular do saneamento, ressaltando que passam a exercer a titularidade dos serviços públicos de saneamento básico, os municípios e o Distrito Federal, no caso de interesse local, e o estado da federação em conjunto com os municípios, que compartilhem efetivamente instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, instituídas por lei complementar estadual, no caso de interesse comum.
Além disso, o exercício da titularidade dos serviços de saneamento poderá ser realizado também por gestão associada, mediante consórcio público ou convênio de cooperação, nos termos do art. 241 da Constituição Federal.
Destaco também o estabelecimento de metas, previsto para os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico, que deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável, e de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgotos, até 31 de dezembro de 2033.
Aproveito para ressaltar que a nova regra trata da viabilização de aporte de capital privado na execução dos serviços de saneamento por meio de contrato de concessão, mediante prévia licitação. Tal situação poderá representar um salto nos indicadores do saneamento, vez que o modelo atual não está sendo suficiente para atender a demanda existente.
JV: A senhora diz: “nova regra trata da viabilização de aporte de capital privado na execução dos serviços de saneamento por meio de contrato de concessão, mediante prévia licitação”. O leitor pode entender que o saneamento de água e esgotos será privatizado? Pode explicar em que circunstâncias? A privatização vai realmente melhorar a quantidade e qualidade dos serviços? Por fim, vai encarecer o serviço para o cidadão brasileiro?
Ana Salett Marques Gulli: Sim, a prestação dos serviços de saneamento básico poderá ser privatizada, por meio de contrato de concessão. Importante esclarecer que o titular do serviço de saneamento é o município e o estado, e que, mesmo ocorrendo a concessão para um particular, a titularidade permanecerá com os entes federados e o serviço deverá ser prestado cumprindo seu objetivo social.
O modelo proposto na Lei 10.026, de 2020, comporta a prestação do serviço tanto por empresas públicas como privadas, em complementação, não de forma excludente. A perspectiva é de que haja uma melhora na qualidade da prestação do serviço, sem necessariamente impactar no valor a ser custeado pelo cidadão.
JV: Para o leitor entender melhor, pode citar exemplos, em que estados da federação em conjunto com os municípios, compartilham instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas e/ou aglomerações urbanas e microrregiões?
Ana Salett Marques Gulli: Há vários exemplos de compartilhamento de instalações operacionais integrantes de regiões metropolitanas, posso citar como exemplo o compartilhamento de terminal rodoviário e de aterro sanitário.
JV: Quais são, em seu sentir os pontos desfavoráveis do novo marco legal?
Ana Salett Marques Gulli: Ausência de dispositivos, contendo previsão destinada ao atendimento do saneamento rural, que possui características próprias e especificidades que, talvez, não sejam contempladas com o modelo proposto de concessões e até mesmo de transferência de recursos.
JV: A que dispositivos e especificidades se refere?
Ana Salett Marques Gulli: A especificidade consiste na compreensão de que o rural se trata de um espaço preenchido por variados grupos de populações, com suas peculiaridades na forma de utilização dos recursos naturais, reproduzindo suas práticas culturais e transitando pela sociedade globalizada. Tais grupos estão distribuídos no território nacional em aglomerações humanas ou de maneira dispersa, próximos ou distantes entre si. Assim, para o atendimento dessa população faz-se necessário um planejamento específico.
A título de exemplo, depreende-se do teor do art. 50 da Lei nº 11.445, de 2007, com as alterações da Lei nº 14.026/2020, que claramente as mudanças inseridas no marco legal do saneamento não contemplaram o saneamento rural, pois foram inseridas várias condicionantes para a alocação de recursos públicos federais que podem inviabilizar o acesso por parte dos entes federados, caso não atendidas, a exemplo da prestação regionalizada dos serviços, (exigência do inciso VII do art. 50).
JV: Sabendo-se que faltam tais dispositivos e especificidades, por que o Congresso Nacional não aproveitou para fazer um trabalho definitivo, ou seja, promulgar uma lei sem essas lacunas? Por que no Brasil cultua-se fazer as coisas pela metade, e às vezes, fazer mal feito?
Ana Salett Marques Gulli: Infelizmente não consigo responder essa pergunta, mas posso assegurar que os entes federados têm condição de auxiliar no equacionamento do problema, pois são os titulares dos serviços de saneamento.
Sobre o tema, considero importante destacar que a sociedade brasileira precisa ser mais diligente no sentido de cobrar dos parlamentares uma atuação que garanta o alcance dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, previstos no art. 3º da Constituição Federal: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
JV: O governo federal já definiu a política de execução do que está previsto no “novo marco legal”?
Ana Salett Marques Gulli: São vários os atores federais que atuam no setor, com isso, a implementação da política federal de saneamento exige, para sua sustentabilidade, dentre outros requisitos, a definição clara de competências entre os diversos órgãos federais intervenientes nas questões de saneamento, de modo a se construir um ambiente de cooperação institucional.
Nesse sentido, três órgãos federais, em decorrência de suas atribuições, têm significativo papel nessa articulação, o Ministério do Desenvolvimento Regional – MDR (coordenador do Plano Nacional do Saneamento Básico), o Ministério do Meio Ambiente – MMA (coordenador do Plano Nacional de Resíduos Sólidos) e a Agência Nacional de Águas – ANA(responsável pela instituição das Normas de Referência para a regulação dos serviços públicos de saneamento básico).
JV: O governo federal já definiu as estratégias para execução do que está previsto no novo marco legal?
Ana Salett Marques Gulli: As estratégias de atuação do governo federal estão consubstanciadas no Plano Nacional do Saneamento Básico, coordenado pelo MDR, no Plano Nacional dos Resíduos Sólidos, coordenado MMA e no recém lançado Plano Nacional do Saneamento Brasil Rural, que será coordenado pela FUNASA.
A par disso estão sendo criados modelos de participação privada para o saneamento, com projetos inicialmente destinados à Região Norte, onde há maior déficit.
JV: A senhora diz: “estão sendo criados modelos de participação privada para o saneamento, com projetos inicialmente destinados à Região Norte”. Essa é uma das respostas mais usuais entre políticos. Com isto o povo fica sem um prazo de quando tal “coisa” vai aparecer e mudar sua dura e triste realidade. A senhora pode estabelecer um prazo para implementação dessa privatização dos serviços de água e esgoto, na região norte e outras regiões do país?
Ana Salett Marques Gulli: Não consigo prever um prazo para a implementação das privatizações, todavia, em decorrência do ambiente normativo favorável, criado com a edição da Lei nº 14.026, de 2020, restou fortalecida a segurança jurídica, de modo a estimular e acelerar os procedimentos para tal fim.
Por fim, importante destacar que dentre as alterações inseridas no marco legal do saneamento, consta que os contratos de prestação dos serviços públicos de saneamento básico deverão definir metas de universalização que garantam o atendimento de 99% (noventa e nove por cento) da população com água potável e de 90% (noventa por cento) da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033.
JV: Obrigado, pelos esclarecimentos que presta à Nação Brasileira.